Barbara Fernandes Ferreira
Nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante.
Sentada à janela de seu quarto, começando a sentir os primeiros sinais de sonolência, a menina meditava sobre a frase que lhe fora sorteada naquela manhã, durante a aula de língua portuguesa. Esse era o momento mais aguardado por ela ao longo de toda a semana: o professor, pouco antes do término da aula, escolhia cinco alunos para escreverem textos baseados em um tema proposto por ele; daquela vez, a jovem estudante estava entre os que tinham de redigir um texto baseado na frase sobre a qual ela tão atentamente refletia. O dia inteiro havia sido dedicado a desenvolver o tema, que a ela parecia mágico e suscitava em sua mente uma série de idéias, todas descartadas até então.
Como o relógio estivesse próximo da meia-noite, o cansaço começava a vir e era hora de preparar-se para dormir. Embora contrafeita por não haver conseguido ao menos elaborar um esboço para o texto, a menina deitou-se na cama e decidiu pensar sobre o assunto até que o sono a vencesse. A mãe veio dar-lhe boa noite e fazer as recomendações para que dormisse bem. Sempre obediente a essas ordens, a jovem somente pediu que a janela permanecesse aberta, pois assim poderia dormir sob a imagem do céu estrelado e sentir a brisa fresca que vinha de fora. A mãe aquiesceu com um misto de orgulho pela inteligência e sensibilidade da filha, e preocupação, pois intimamente temia a personalidade reservada e alheia da menina. Novamente a sós, a jovem fixou o quadro de natureza que se desenhava diante de seus olhos.
Em dado momento, porém, um fato insólito perturbou a placidez de suas meditações. Um pássaro, de singela coloração amarelada, atravessara a janela e revoara pelo quarto, até finalmente pousar-lhe no regaço, acomodando-se como se estivesse no próprio ninho. Apesar da surpresa, a menina não esboçou nenhum gesto de defesa; manteve apenas os olhos fixos no animal com um olhar que denunciava a curiosidade por entender a razão de semelhante visita. Após retribuir-lhe o olhar, o pássaro começou a entoar uma melodia melancólica, estranha aos ouvidos da menina, mas dotada de uma beleza com a qual ela não conseguia estabelecer comparação dentre as músicas que conhecia. Nenhum instrumento emitia aquele som singular, e nenhum compositor tivera a felicidade de compor aquela sequencia harmoniosa de sons. A ela parecia que o animal lhe contava sua história de vida; parecia cantar que saíra do ninho em busca de um lugar seguro enquanto perdurasse a cheia, pois nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante em que estava construído seu lar. Quando a maré baixava, ele voltava e reconstruía tudo o que fosse preciso para conservar o mesmo aspecto que apresentava o ninho quando a mesma água tragara consigo a passarinha sua companheira. Assim que a maré descesse, ainda cantava ele, haveria de tornar a procurá-la e, se não a encontrasse, continuaria o trabalho de recompor o ninho, até que a próxima enchente viesse e ele buscasse outro regaço de menina embebida na noite. Chegando aos acordes finais, o animal emitiu o que pareceu um lamento e, como se tivesse cumprido um dever, voou para fora, perdendo-se na noite.
A menina teve certa dificuldade em acordar na manhã do dia seguinte. Mas, tão logo recobrou a consciência, o acontecimento da noite anterior assomou-lhe à mente. Nem bem havia coordenado os primeiros pensamentos e a mãe abriu a porta do quarto, impelida pela demora da filha, que surpreendeu ainda de pijama. Com um olhar de sutil reprovação, a mãe ordenou-lhe que se aprontasse depressa, pois senão chegaria atrasada à escola. Assim que ficou novamente sozinha, a menina dirigiu o olhar para a janela, porém, para sua surpresa, ela estava praticamente fechada, com um estreito vão para passar um pouco de ar, conforme a mãe costumava fazer a fim de proteger a filha do sereno da noite sem que o quarto perdesse a ventilação.
Sonho ou realidade? O pássaro atravessaria a abertura mínima da janela? A menina pedia que não tivesse sido tão-somente um sonho. Novamente a mãe veio chamá-la e ela não quis perguntar sobre a janela. Preferiu manter a sensação de fantasia com a qual havia acordado. E ponderou que, após aquela noite, seu texto já estava pronto, bastava-lhe colocá-lo no papel. No caminho para a escola, ela não via as ruas: sua imaginação estava distante em busca do pássaro que as impressões da infância ainda recente moldaram-lhe na mente virgem das atribulações da vida.
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quarta-feira, 4 de novembro de 2009
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