sábado, 21 de novembro de 2009

MADAME NORA: RUNAS E TAROT

Exercício coletivo

- Você prefere o jogo de uma ou três runas?
- Como assim?
- Se quiser jogar com três runas, teremos respostas para seu passado, presente e futuro

Não sabia bem se queria mesmo saber do futuro. Do passado não queria lembrar. E o presente era vivo demais. Mas resolveu:

- Vai mesmo o jogo com três...

A mulher deu inicio ao jogo. A ansiedade começou a tomar conta daquele homem. Viera depois de muitas hesitações e jurara jamais contar a ninguém sobre sua visita a uma vidente...

Pensou, isso é coisa de mulher. E por segundos quis ordenar a paragem do tempo e a leitura do futuro. Tarde demais, a primeira runa já estava sobre a mesa. Seguiram-se mais duas. A expressão daquela mulher correspondia às inscrições das pedras: era enigmática...

Continuava arrependido e relutante. Não sabia se deveria manter a postura cética ou ter nuances de esperança e tentar adivinhar as expressões no rosto daquela enigmática mulher.

A vidente ficou alguns instantes quieta, apreensiva, olhou-o nos olhos e disse preocupada:

- Sei não...
- O que?

- Posso falar? Estou vendo que algo de muito estranho vai acontecer. Tome muito cuidado com sua saúde.,

Não teve ouvidos para escutar mais nada. Uma dor aguda no peito, os olhos turvos, o corpo desabando pesado no chão. A uútima visão era a da esposa, excitada...

- Marquei uma hora pra você com Madame Nora. Você vai gostar das previsões dela...

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

“Bendito maldito”, a biografia de Plínio Marcos no Teatro Guarany

Nesta quinta-feira, 19 de novembro, quando se completam dez anos da morte de Plínio Marcos, a Prefeitura Municipal de Santos, pela sua Secretaria de Cultura, homenageia o dramaturgo com o lançamento do livro "Bendito maldito - Uma biografia de Plínio Marcos", com a presença do autor Oswaldo Mendes. O evento será no foyer do Teatro Guarany (Praça dos Andradas, 100), no Centro Histórico, a partir das 19h30.
*
“Quinhentas páginas de um livro híbrido que vibra nas mãos de quem o lê, tal a vertiginosidade dos fatos encadeados, pesquisados à exaustão, que nos revelam seis décadas da trajetória do cometa Plínio Marcos. Plínio Marcos, ele mesmo, o tempo todo, como se autodefiniu. A obra ciclópica de Oswaldo Mendes é dividida em atos e cenas como se espetáculo teatral fosse, eivada de flashbacks e zooms próprios do cinema, esclarecidos nos seus vaivéns pela rigorosa Linha do tempo que situa historicamente fatos e datas de mais de meio século. Oswaldo mergulha no cipoal de relatos, memórias e emoções com o ímpeto de um trem em movimento.”
Assim a crítica teatral Ilka Marinho Zanotto inicia o seu prefácio a Bendito maldito – Uma biografia de Plínio Marcos, de Oswaldo Mendes, que a Editora Leya acaba de lançar. A biografia chega à livrarias coincidindo com os 50 anos da estreia de Barrela, a primeira peça de Plínio Marcos, que em 1º de novembro de 1959 fez uma única apresentação em Santos, sendo proibida em seguida. Também coincide com os dez anos da morte do dramaturgo, em 19 de novembro de 1999. O título Bendito maldito foi sugerido pelo editor Quartim de Moraes, que há nove anos propôs a Oswaldo Mendes, com o apoio da família de Plínio, que escrevesse a biografia do amigo com quem conviveu desde 1969 no teatro e na imprensa.

“Adiei o mais que pude o trabalho porque não queria escrever movido pelo tributo à amizade”, diz Oswaldo Mendes. “Atendendo ao que o Plínio exigiria, eu não queria agir feito Poliana, oferecendo o retrato pacificado de uma personagem complexa e guerreira como ele. A vida de Plínio é uma grande narrativa dramática, que vai da política ao teatro passando pela música, o futebol, a repressão, a imprensa, o tarô, a televisão, a religiosidade. Daí a opção de dividi-la em três atos, com respectivas linhas do tempo, na esperança de ajudar o leitor, principalmente o das novas e futuras gerações, a seguir a trajetória do personagem e compreender as circunstâncias que determinaram a sua ação. Embora o título sugira uma contradição adjetiva, Bendito maldito, procurei substantivar a narrativa, cúmplice do próprio Plínio que pedia para não lhe pregarem rótulos.”

OSWALDO MENDES
Nascido em Marília (SP) em 19 de setembro de 1946, atua no teatro e na imprensa de São Paulo desde 1969. Ator, diretor e dramaturgo, formou-se pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo. Jornalista de 1969 a 1992, dirigiu o jornal Última Hora (SP), foi editor do suplemento Folhetim e sub-secretário de redação da Folha de S. Paulo, editor de Cultura da revista Visão e foi um dos fundadores da Associação Paulista de Críticos de Arte, APCA. Livros publicados: Getúlio Vargas, uma biografia (Editora Moderna, 1984), Ademar Guerra: O teatro de um homem só (Editora Senac, 1997), indicado para o prêmio Shell, e Teatro e Circunstância (Editora Núcleo, 2005), que reúne três de suas peças já encenadas – Um tiro no coração (1984), Voltaire – Deus me livre e guarde (1998, prêmio Mambembe da Funarte) e A dança do universo (2005). Autor de ensaios biográficos de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque e Ayrton Senna, e da história da Bossa Nova, para a coleção Anotações com Arte.
Como ator estreou em Missa Leiga de Chico de Assis, direção de Ademar Guerra, em 1972, e integra desde 2001 a companhia Arte Ciência no Palco - www.arteciencianopalco.com.br - onde atuou nas peças Copenhagen, A dança do universo, E agora, sr. Feynman?, Quebrando códigos, After Darwn, Oxigênio e Perdida – Uma comédia quântica, pela qual foi indicado ao prêmio Shell de melhor ator em 2002. Dirigiu, entre outros espetáculos: Brecht Segundo Brecht com Armando Bogus, São Paulo Brasil com César Camargo Mariano, Essa mulher com Elis Regina, Sinal de vida de Lauro César Muniz com Antonio Fagundes e Francisco Milani e Natal na praça com Etty Fraser.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O ÚLTIMO DRINK

Paulo Mauá

Sob o clima quente caribenho, Perez não se queixa do calor, sozinho em uma das mesas externas do Tropicana´s Bar, em plena Avenida Malecon, ponto de encontro de turistas e moradores de Havana.
Mesmo com o terno cinza e a gravata de linho em forma de serpente cruel em qualquer pescoço latino-americano, o que mais o incomoda é a missão daquela manhã. É o primeiro dia de janeiro de 1959 e com o sono atrasado devido à festa de final de ano, aguarda ser abordado por um estranho em mais uma incumbência oficiosa do seu serviço perigoso.
Ser agente secreto traz características excitantes e românticas, baseadas nos roteiros de cinema, mas não passa de fonte inesgotável de insegurança pessoal por não poder confiar em ninguém. Ser espião é ter o dom de transformar labuta em fel entre festas, trincheiras, mentiras e disfarces.
- Garçonete, mais um daiquiri, por favor.
A expectativa do encontro com o informante dos guerrilheiros escondidos nas florestas de Sierra Madre faz com que o corpo multiplique o suor na testa de Perez em gotas persistentes. E não são nem 11 horas da manhã.
A atendente, em inglês de péssima pronúncia em contrapartida à sua estonteante beleza trigueira, deixa o daiquiri à sua frente, além do sorriso branco imenso em troca da gorjeta. O dólar sai do paletó rapidamente. Ele olha para o copo e já pede outro. Aquele drink não daria nem para o começo. Ela some dentro do bar como num passe de mágica.
Ser cubano e compartilhar as idéias do perpétuo ditador Fulgêncio Batista, desde a década de 40 no cargo através de diversos golpes de estado, é viver no fio da navalha. A prostituição, a corrupção e as negociatas com os Estados Unidos caracterizaram o presidente como inimigo número um do povo. Os poderosos fizeram de Cuba o quintal do perverso capitalismo e um país fragilizado. Pior que isso, é ser agente duplo no complicado trânsito de informações secretas do governo e dos rebeldes. Perez estava cansado de viver assim.
O sol, forte e poderoso avança no céu, içando a angústia da espera.
De repente, um vulto na cadeira ao lado, disfarçado sob um chapéu de palha de aba larga. Não é possível descobrir se é cubano, ianque, jovem ou velho, até mesmo homem ou mulher.
Tenta olhar o rosto do recém-chegado denotando discrição, mas lembra do objetivo da missão: trocar as palavras-chave, pegar o envelope e partir de imediato, sem riscos tangíveis.
A primeira senha é dele. Arrisca as palavras em um fôlego só:
- Cuando calienta el sol, hasta la playa.
A resposta vem em forma de perguntas curtas:
- Te gusta Lola ? Te gusta Carmen ?
A voz é forçada. Um som feminino rouco simulando o sexo oposto.
Ele continua com as senhas de segurança:
- Me gustan todas. Ô, como me gustan, ô, ô, ô.
O contato responde implacável:
- Ai caramba, madrecita.
Pronto. O reconhecimento está feito e a transação precisa ser finalizada. O envelope pardo troca de mãos. Perez, aliviado, esvazia o copo em um único gole e lembra da formosa garçonete. Será que ela demora com o segundo daiquiri?
Repara que o vulto de chapéu nada discreto permanece ao seu lado. Isso não estava previsto.
A voz quase conhecida, agora totalmente solta e sensual, convida-o:
- Toma um mojito comigo ?

Que senha nova é aquela? Perez descobre no perfil revelado a garçonete sumida. Ela é o contato da missão quase suicida. A agradável surpresa suscita a dúvida para um profissional tarimbado como ele: e se for uma isca? Começa a suar de verdade enquanto a beleza indiscutível da morena cinge suas veias. A razão, senhora absoluta nos momentos instáveis, esvai-se entre os capítulos de regras que reza a cartilha de espionagem mundial.
- Você quer ou não quer o meu mojito, Perez ?
Ele hesita um pouco, cai na real e olha para os lados, preocupado com os transeuntes. Resignado, aceita com um sinal de cabeça mas pergunta em seguida:
- Mas quem vai servir a gente, Rúbia, se está dando o inusitado prazer de estar ao meu lado nesse momento? Até quando você poderá permanecer comigo? Na verdade, o que me aflige é a incerteza de como vamos viver a partir de agora...Neste momento, o nosso traiçoeiro presidente Batista foge para os Estados Unidos, com as malas cheias de dólar. Fidel e seus companheiros estão tomando Havana por uma Cuba melhor. E nós? O que vamos fazer?
- Perez, querido, somos responsáveis pelos nossos destinos. Não pretendo me esconder mais. Quero ser abraçada do amanhecer ao por do sol. Mas preciso dos seus braços junto a mim. Se vou largar minhas aflições, quero que abandone as suas preocupações também. Viva mais. Solte-se no ritmo da alma. Quero bailar contigo o ano inteiro, a vida toda.

Final 1

Os olhos dele revelam a emoção e o peito não se contem:
- Você tem razão. Me ensine o mambo.
Perez se aproxima de Rúbia para o primeiro beijo público de suas vidas. Antes que os lábios se toquem, um estampido de rifle AK-47 anuncia a trajetória da bala, vinda da janela do 3º andar do prédio em frente ao Tropicana´s Bar. O belo rosto da mulher bate inerte contra a mesa. Antes que ele a socorra ou descubra de que lado veio o inoportuno golpe, outro estampido da arma russa se faz ouvir entre os gritos na multidão.

Final 2

Os olhos dele revelam a emoção e o peito não se contem:
- Você tem razão. Me ensine o mambo.
O envelope abandonado sob a mesa é pisoteado pelas botas dos homens liderados por Guevara. Por instantes, o ritmo da bela ilha caribenha mistura doses calientes de democracia e utopia. A praia de Varadero testemunha ao longe as pegadas soltas de Rúbia e Perez revolucionadas para sempre a partir de uma manhã de ano novo.

O ESCONDERIJO DA ALMA

Exercício coletivo

Acordou cedo, dirigiu centenas de quilômetros, mochila nas costas, água, barras de cereal, luvas, capacete, disposição e desprendimento. Sentada ali, à porta da caverna, o silêncio total era o antídoto dos males urbanos deixados à distância.
Distância era modo de dizer, pois ela fugira para esse local com intuito de se esconder, de parar de pensar no que a atormentava. Tinha tentado outras formas de cura nesses três meses de agonia. Horas extras no trabalho, muitas taças do vinho preferido, um novo guarda-roupa. Em vão.
Pensava na solidão como terapia. Respirou fundo e começou a entrar na caverna. A cada passo, a escuridão aumentava como se estivesse em seu próprio interior, negro, gélido. Mas uma paz ainda desconhecida começou a invadi-la. O silencio e a solidão pareciam grandes companheiros, os únicos que a compreendiam.
Levava na mochila “A Caverna” de Platão. Precisava lidar com suas sombras e medos. Mas ali, naquela caverna, sentia a falta da luz. Estava entregue a si mesma. Era isto que procurava, o derradeiro encontro a partir do qual daria o grande salto.
Caminhou para o infinito breu até a água terminar, a bússola quebrar e sob a luz artificial, sentou e leu o livro, até a bateria acabar.
E foi assim que ela nunca mais saiu de lá.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

SOLIDÃO

Antonio Taveira

Nunca ouvi um Bom dia! Boa tarde! Ou Boa noite! Tinha sempre uma frase, uma história, um acontecimento.
─ Olá Mário, bom dia.
─ Rapaz, tava até agora na Receita Federal, só atendem quinta-feira, tenho que chegar às sete horas e pegar uma senha, depois esperar até ser atendido.
Se estava chovendo, falava da chuva; se estava sol, era o motivo do papo. Por mais cedo que chegasse ao prédio, a porta de ferro já estava aberta ─ O Mário já chegou! Encontrava-o conversando com o senhor da banca. No bar da esquina, tomava uma cervejinha no final do dia. Mas não era exclusivo deste. Variava sempre, cada hora em algum barzinho diferente, sempre sorrindo e contando “causos” e jogando conversa fora. Mas o bar não era seu cotidiano não. Conversava com o Chico do açougue, com o Zé do laticínio, com os motoristas de táxi do ponto da Senador. Era eclético, falava com todo mundo e sobre qualquer assunto. O sorriso fácil sempre estava em seu rosto. Seu escritório de contabilidade, imagino, lhe permitia uma vida financeira tranqüila complementando a aposentadoria. Por isso, quando o vizinho me mostrou o obituário, não acreditei:

─ O Mário não! Não pode ser. Uma pessoa como ele não poderia tomar uma atitude desta.
─ Parece que ele havia tentado antes. Depois da separação, ficou muito sozinho, os filhos, tinha um casal, não o procuraram mais. Proibiram-no até de ver o neto, companheiro para o jogos do Jabaquara e Portuguesinha. Eu o via trazendo uma quentinha para comer só, no escritório. Apesar de falante, sorridente, conversando com muita gente, era uma pessoa triste. Na hora do acidente, o maquinista até o viu, mas parar uma locomotiva em movimento não é uma tarefa de poucos metros.
Até hoje custo a acreditar, mas a solidão é um sentimento poderoso que leva as pessoas a cometer atos insanos como este do Mário.

UMA REUNIÃO DO COMITÊ

Antonio Taveira

− Todo mundo recebeu a ata da última reunião?
Sim geral.
− O dinheiro do mês passado foi todo praquele menino da cadeira de rodas. Como não podemos dar dinheiro para pessoa física, conforme nosso estatuto, doamos através da entidade do Serrinha.
– Alguém tem notícias da Mariana filha da Célia?
− Ela ficou dois dias na UTI, mas já está bem e em casa.
– Todas vão ao baile de aniversário né?
Alguns sins.
− Nós não poderíamos...
− A verba deste mês, o que faremos com ela?
− A Sonia Costa lá da Oficina do Futuro perguntou das camisetas, é pro Natal não é?
– A reunião da Cassi vai ser aqui ou lá no escritório deles?
− Tem pouca gente indo, acho que vai ser lá!
− Só se for com o dinheiro de dezembro, por que o de novembro usaremos na festa das crianças.
− Acho que...
− A Casa Caio pediu ajuda para alimentos.
− O Lar dos Velhinhos tinha pedido fraldão e alguns remédios, tentei até com um médico amigo meu umas amostras grátis.
− Eu poderia ver com a Sonia...
− Não esqueçam o almoço da Associação dos Aposentados vai ser lá na sede da Cantareira, temos ônibus de graça. Vamos levar uma turma grande.
− Não é no mesmo dia da festa das crianças?
− Por falar em festa, a Juíza respondeu o ofício.
− Ela conseguiu alguma coisa?
− Sim, ela conseguiu patrocínio para os sanduíches, o bolo e as bebidas.
− Eu consegui...
− Célia, você fala com a mulher do algodão doce e da pipoca?
− Quando nós vamos comprar os brinquedos? Isabel, nós vamos com o seu carro que é bem maior, não?
− Sim. A gente podia ir no dia 15, quarta feira.
– Sueli, vamos fazer uma dupla pro campeonato de tranca?
− Eu já me inscrevi com a Rosa.
− Esse ano nós...
− A Jaci conseguiu falar com aquela mulher da entidade da Zona Noroeste?
− Sandra, nós já estamos no assunto da festa.
− Tá bom, desculpe.
− Vamos falar com o pessoal do Sonho de Criança, prá saber que apresentação eles vão fazer.
− Rosana, tu fala com o professor de Dança de Rua, eles são tão bons...
− Eu já havia comentado com ele, só está aguardando a confirmação da data.
− Então está tudo acertado! Vamos combinar durante a semana da festa a que horas vamos chegar para decorar a quadra.
− Toninho, você não quer falar nada?
− Sim, é um prazer muito grande fazer parte deste comitê como único homem no meio desta turma de mulheres. Eu tentei falar cinco vezes...
− Nossa, já é tarde, tenho que ir embora.
− Eu também, Célia me dá uma carona?
− Tchau meninas, a gente se vê na festa.
− Tchau...
− Tchau...
− Tchau...

COMEMORAÇÃO

Exercício coletivo

- Então, você vem ou não vem? Do outro lado da linha, uma pausa indefinida no tempo. Fiquei sem graça de perguntar mais uma vez e aguardei a resposta.
- Vou sim, pode me aguardar. E mantenha uma garrafa de champanhe no gelo. Temos mesmo o que comemorar.

A comemoração para atingir a plenitude como resultado satisfatório precisa ser boa para ambos.

- Você acha que realmente temos que comemorar?
- Eu acho!.
- Você sempre foi assim. Egoísta, individualista...
- Mas, agora, não sou mais assim, meu bem. Depois que te conheci, mudei muito, amadureci.
- Bem, isso é verdade. Mas ainda falta bastante pra ficar como eu gosto.
- Você nunca está contente!!!.
- Não é assim. Eu só quero atenção, atenção de olhar pra mim quando falo. Carinho, carinho de um beijo inesperado, um olhar afetuoso, uma rosa de vez em quando. Você acha que isso é ser muito exigente?
- E brindar aos nossos encontros e desencontros não conta? Uma vida inteira juntos, e a que preço...
- Você às vezes é gozado. Quando diz que eu ainda não sou como você gostaria me agride. Fica muito pouco para comemorar com esse jeito machista.
- Então não há o que comemorar?
- Para de brincadeirinha boba. Ninguém está brincando aqui.

Era o nosso jogo privado. Todo ano, na data do nosso aniversário de casamento, armávamos uma discussão para depois fazer as pazes. Com champanhe.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

ANTOLOGIA

ANTOLOGIA

Até 15 de janeiro de 2010, a Andross Editora estará selecionando contos para a coletânea TRATADO SECRETO DE MAGIA, a ser lançada em abril de 2010 na Biblioteca de Literatura Fantástica Viriato Correa, em São Paulo. Os contos que interessam são aqueles relacionados não só à magia, mas também feitiçaria e bruxaria, desde histórias que remetam à realidade histórica, como a Inquisição, até tramas que sejam ligadas à fantasia, no estilo Harry Potter.

Qualquer pessoa pode enviar um texto para avaliação e possível publicação, basta que siga o regulamento de envio da obra, que está no website da editora: www.andross.com.br

A organização da antologia está a cargo da escritora de literatura fantástica Helena Gomes, autora da saga A Caverna de Cristais e de vários outros livros relacionados ao gênero fantástico.

Além desta, a Andross ainda tem outras sete antologias com inscrições abertas para o envio de textos. São elas:


· ECOS DA ALMA - ANTOLOGIA DE POEMAS
· MOEDAS PARA O BARQUEIRO - CONTOS FANTÁSTICOS SOBRE A MORTE
· ELAS ESCREVEM...CONTOS, CRÔNICAS E POEMAS SÓ DE ESCRITORAS
· UNIVERSO PAULISTANO VOL. II - CONTOS CRÔNICAS E POEMAS DE UMA CIDADE QUE NUNCA DORME
· HISTÓRIAS LILIPUTIANAS - ANTOLOGIA DE MICROCONTOS
· MARCAS NA PAREDE- CONTOS SOBRENATURAIS, DE SUSPENSE E DE TERROR
· 2054- CONTOS FUTURISTAS

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A Super Reunião

Paulo Mauá

- Desculpa o atraso. Perdi alguma coisa ?
- Eles ainda nem começaram.
- Vou sentar aqui ao seu ladinho. Oooooopa. O que é isso ?
- Sentou em cima do Homem Invisível.
- Mil perdões. Invisível mas forte, hem?
- Pára com essa baixaria e senta logo.
- O que eles estão esperando? Vamos começar, pessoal?
- Fica quieto. Chega atrasado e grita com todo mundo? Coisa feia.
- Feia é a Batgirl acordando de manhã, menino prodígio.
- Feio é vir com essa roupa ridícula. Não tinha outra coisa pra vestir?
- Não deu tempo. Vim direto de Gotham City. Por falar nisso, o comissário Gordon mandou um abraço super apertado e adorou a dica do batom gloss. E você? Não tem espelho no quarto? Sua roupinha vermelha e capa amarela-ouro me lembra premio hors-concours de desfile de carnaval no Hotel Glória do Rio de Janeiro. Categoria originalidade. Só não sei determinar se feminina ou masculina. Pelo menos a minha roupa é cinza-sóbrio.
- Pedi para o Alfred fazer outra mais discreta, mas ele não achou a helanca na cor azul na 25 de março.
- Helanca? Isso não existe mais. Agora é lycra, Robin.
- Você sabe que não posso usar lycra. Me pinica todo e fico com assadura. Depois não consigo sentar direito.
- Helanca é da época do Robin, não você, o Hood. Por falar nisso, ele já chegou? O Frei Tuck ficou de me trazer um galão de vinho do padre.
- Eles sumiram depois que foram morar no Heroes Resort Spa de Águas de São Pedro, junto com o Capitão América, o Arqueiro Verde e o Pimpinela Escarlate.
- Pimpinela o que, Robin ?
- Deixa pra lá. Quem deixou um abraço foi o The Flash. Veio pra reunião, assinou a lista de presença e saiu rapidinho.
- Ei. Criança aqui não pode. Sai, Ben10. Vai brincar com as Superpoderosas no parquinho infantil.
- Acho que eles vão começar. Qual é o primeiro item da pauta?
- Regularização do horário de alimentação do estábulo pelos funcionários terceirizados do prédio. Quem é o tonto que tem cavalo aqui no condomínio?
- Santo estrume seco, Batman. Esqueceu do Zorro e do Fantasma? E por falar no Fantasma, adoro o colant púrpura dele...
- Será que é de helanca, Robin? Desculpa, é uma brincadeirinha. Quando chegar o item da recreação, vou reclamar. A idéia de colocar o desaquecedor-hipertérmico-nuclear-ultra na piscina foi do Aquaman ?
- Não. Foi do Pingüim, aquele tratante. Não dá certo super-herói morar junto com vilão no mesmo edifício.
- Não aponta que ele cismou com você na reunião passada.
- To andando e andando pra ele e pro vizinho dele, o de terno verde cheio de ponto de interrogação. O cara só fala em charadas e atrapalha todo o andamento da reunião.
- O de cabelo verde e sorriso escancarado que está ao lado deles me ligou ontem no batfone querendo me convencer a forrar as mesas do salão de jogos. Todo mundo só quer gastar.
- Santa Dama de Copas, Batman. Nunca mais sento à mesa de carteado com esse cara. Sábado passado, no torneio de buraco, o cidadão tirou coringa de tudo quanto é manga da camisa e bateu. Nem deu tempo de pegar o morto. Foi uma roubalheira, quebraram o maior pau. Você não soube da confusão que deu?
- Não. Eu estava na sauna.
- A sauna não estava em manutenção?
- Levei o Tocha Humana junto. Esse item que condômino não pode deixar seus pertences na área comum é pertinente. Quase passei em cima da prancha do Surfista Prateado com a batmoto na semana passada.
- E a clava esquecida no elevador de serviço? O MightTor põe a culpa nos Herculóides e vice-versa. E ninguém resolve, pois a clava continua lá, subindo, descendo, passeando de elevador.
- Uau, Robin !!! Quem é aquela dona gostosa de couro preto e chicotinho na mão? Que gata !!!
- É a prima da moradora do 122.
- Aquela maravilha de mulher? Um dia ainda pego uma das duas na escadaria e faço o serviço completo.
- Santa apelação, Batman. Por acaso você é chegado?
- Quieto, Robin. Chegou o síndico.
- Será que ele acha que cuecona vermelha por cima do uniforme azul é fashion ?
- E o cara ainda se sente homem vestido assim, é mole?
- Homem, não. Se sente super-homem. E é um baita homem...ainda por cima, voa.
- Rooooooooooobin. Mantenha-se. Porque você não aproveita e pergunta onde ele comprou a helanca do uniforme dele? Desculpe, não resisti...
- Espero que ele não saia voando pela janela como na reunião passada quando jogaram kriptonita na mesa e a discussão esquentou.
- Ele sempre está quente. Sacou ?? Clark Kent.
- Santa apelação, Batman !!! Estão acabando com a coitada da faxineira dizendo que ela não dá conta do recado.
- Também, com o zelador enchendo diariamente os tetos do hall de entrada com teia de aranha, ninguém consegue dar conta da limpeza. Já fecharam o orçamento para trocar o portão de acesso das garagens e refazer o muro?
- Já. Com o Demolidor.
- Mas esclareceram porque amanheceu quebrado daquele jeito?
- O Homem de Ferro chegou de porre de madrugada. Beber e dirigir dá nisso. O que o Homem Elástico acabou de perguntar?
- Se eu sabia do Homem Fluído. Dei dez reais pra ele dar uma lavadinha no batmóvel que está na garagem do subsolo.
- Santa explosão de raiva, Batman. Porque aquele cara está ficando nervoso e verde? Rasgou a camisa inteira !!!
- Acho que ele acabou de descobrir que o fundo de reserva vai dobrar na próxima prestação para a compra dos enfeites de Natal.
- O Wolverine acabou de rasgar a convenção do condomínio em picadinhos.
- Sei não, Robin, desse jeito não vamos chegar aos assuntos gerais. Que balbúrdia !!! Acho melhor a gente voltar a morar na nossa batcaverna.

BALBÚRDIA

Thays Morales


- Bom dia, bom dia, good morning!!!
- Oi tia!
- Oi Querida!
- Abram as janelas, toda vez tenho que mandar?
- Tia?
- Que foi?
- O Pedro me bateu!
- Por que?
- Não tia, ela me provocou. Ela começou.
- Bem, não quero saber quem começou, peçam desculpas um pro outro.
- Desculpa.
- Desculpa
- Falem mais baixo, não consigo ouvir a menina aqui. Que bagunça!!
- Tia fiz pra você.
- Tia, ele me xingou.
- Xingou?
- Disse que sou burra.
- Ignora! Que é mentira.
- Mentira nada, tia. Ela é burra mesmo.
- Que coisa feia. Pede desculpas.
- Tia, a senhora ta tão linda hoje.
- Obrigada. Você é uma graça. Mas seus colegas, a maioria só sabe fazer- bagunça.
- Eu não faço bagunça, tia.
- Eu sei! Alguns fazem. Você não.
- Menino, para de jogar bola na classe. Vai acabar se machucando. Você ta surdo?
- Deixa eu jogar tia, só um pouquinho.
- Não pode. Aqui não.
- Tia posso beber água?
- Tia posso ir no banheiro?
- Pode. Não, não pode. Volta aqui, menina. Não deixei sair. Um de cada vez. Todo mundo sentado, não agüento mais essa balbúrdia!!!
- Credo, o que isso tia? Que palavra esquisita.
- Isso é o que vocês sabem fazer muito bem. Só isso.

domingo, 8 de novembro de 2009

DICAS

Certo: Nunca o vi... Nunca as convidei....
Errado: Nunca lhe vi...

Certo: Chegou a São Paulo
Ela vai ao cinema
O pai levou as crianças ao teatro.
Obs. Verbos de movimento exigem a e não em.

Certo: Onde vou ou Aonde vou?
Obs. Pode-se usar as duas formas

Despercebido = que não foi notado
Ex: um fato passou despercebido

Desapercebido= desprovido, desprevenido
Ex: Eu estava desapercebido de dinheiro

Sanar= corrigir
Sanear = recuperar, tornar habitável

Infligir= aplicar
Infringir= violar

Fluir= proceder, escorrer
Fruir= aproveitar

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

CANTIGA DE MENINA

Barbara Fernandes Ferreira

Nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante.
Sentada à janela de seu quarto, começando a sentir os primeiros sinais de sonolência, a menina meditava sobre a frase que lhe fora sorteada naquela manhã, durante a aula de língua portuguesa. Esse era o momento mais aguardado por ela ao longo de toda a semana: o professor, pouco antes do término da aula, escolhia cinco alunos para escreverem textos baseados em um tema proposto por ele; daquela vez, a jovem estudante estava entre os que tinham de redigir um texto baseado na frase sobre a qual ela tão atentamente refletia. O dia inteiro havia sido dedicado a desenvolver o tema, que a ela parecia mágico e suscitava em sua mente uma série de idéias, todas descartadas até então.
Como o relógio estivesse próximo da meia-noite, o cansaço começava a vir e era hora de preparar-se para dormir. Embora contrafeita por não haver conseguido ao menos elaborar um esboço para o texto, a menina deitou-se na cama e decidiu pensar sobre o assunto até que o sono a vencesse. A mãe veio dar-lhe boa noite e fazer as recomendações para que dormisse bem. Sempre obediente a essas ordens, a jovem somente pediu que a janela permanecesse aberta, pois assim poderia dormir sob a imagem do céu estrelado e sentir a brisa fresca que vinha de fora. A mãe aquiesceu com um misto de orgulho pela inteligência e sensibilidade da filha, e preocupação, pois intimamente temia a personalidade reservada e alheia da menina. Novamente a sós, a jovem fixou o quadro de natureza que se desenhava diante de seus olhos.
Em dado momento, porém, um fato insólito perturbou a placidez de suas meditações. Um pássaro, de singela coloração amarelada, atravessara a janela e revoara pelo quarto, até finalmente pousar-lhe no regaço, acomodando-se como se estivesse no próprio ninho. Apesar da surpresa, a menina não esboçou nenhum gesto de defesa; manteve apenas os olhos fixos no animal com um olhar que denunciava a curiosidade por entender a razão de semelhante visita. Após retribuir-lhe o olhar, o pássaro começou a entoar uma melodia melancólica, estranha aos ouvidos da menina, mas dotada de uma beleza com a qual ela não conseguia estabelecer comparação dentre as músicas que conhecia. Nenhum instrumento emitia aquele som singular, e nenhum compositor tivera a felicidade de compor aquela sequencia harmoniosa de sons. A ela parecia que o animal lhe contava sua história de vida; parecia cantar que saíra do ninho em busca de um lugar seguro enquanto perdurasse a cheia, pois nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante em que estava construído seu lar. Quando a maré baixava, ele voltava e reconstruía tudo o que fosse preciso para conservar o mesmo aspecto que apresentava o ninho quando a mesma água tragara consigo a passarinha sua companheira. Assim que a maré descesse, ainda cantava ele, haveria de tornar a procurá-la e, se não a encontrasse, continuaria o trabalho de recompor o ninho, até que a próxima enchente viesse e ele buscasse outro regaço de menina embebida na noite. Chegando aos acordes finais, o animal emitiu o que pareceu um lamento e, como se tivesse cumprido um dever, voou para fora, perdendo-se na noite.
A menina teve certa dificuldade em acordar na manhã do dia seguinte. Mas, tão logo recobrou a consciência, o acontecimento da noite anterior assomou-lhe à mente. Nem bem havia coordenado os primeiros pensamentos e a mãe abriu a porta do quarto, impelida pela demora da filha, que surpreendeu ainda de pijama. Com um olhar de sutil reprovação, a mãe ordenou-lhe que se aprontasse depressa, pois senão chegaria atrasada à escola. Assim que ficou novamente sozinha, a menina dirigiu o olhar para a janela, porém, para sua surpresa, ela estava praticamente fechada, com um estreito vão para passar um pouco de ar, conforme a mãe costumava fazer a fim de proteger a filha do sereno da noite sem que o quarto perdesse a ventilação.
Sonho ou realidade? O pássaro atravessaria a abertura mínima da janela? A menina pedia que não tivesse sido tão-somente um sonho. Novamente a mãe veio chamá-la e ela não quis perguntar sobre a janela. Preferiu manter a sensação de fantasia com a qual havia acordado. E ponderou que, após aquela noite, seu texto já estava pronto, bastava-lhe colocá-lo no papel. No caminho para a escola, ela não via as ruas: sua imaginação estava distante em busca do pássaro que as impressões da infância ainda recente moldaram-lhe na mente virgem das atribulações da vida.

CONVERSA DE BAR

Barbara Fernandes Ferreira

- Uma cerveja estupidamente gelada...
Enquanto o garçom se afasta para atender o meu pedido, olho ao redor do bar quase vazio àquela hora. Além de mim, apenas os empregados do bar. Mas é melhor assim, meu anonimato está garantido. Não quero conversa, nem brincadeira, nem mesmo bebedeira. Um pouco de solidão, só isso.
O rapaz relanceou o olhar pelo bar e, na sua angústia, deu um longo suspiro, enterrando a cabeça nas mãos. Não conseguia atinar com nenhum outro lugar onde pudesse ficar assim, tão concentrado em si, sem ninguém para lhe perguntar porquês ou mesmo oferecer-se para auxiliá-lo. Queria apenas remoer todos os fatos, desde o princípio, e questionar-se, ainda mais uma vez: “Em que ponto eu errei?”.
Os garçons, já habituados a ver entrarem no bar clientes em estados emocionais pouco equilibrados, não se abalaram pela presença do rapaz; apenas, como era costume, passaram a observá-lo sorrateiramente, a fim de evitar qualquer situação constrangedora, comum em casos como aquele aparentava ser. No entanto, o jovem não pretendia se expor e o garçom teve que tomar a iniciativa de perguntar qual seria seu pedido, visto que o rapaz tardava em fazê-lo. Cada vez mais fechado, ele murmurou a última frase que o empregado do bar lhe dissera em tom de gracejo, como se mesmo ali houvesse alguém disposto a tentar socorrê-lo: - Uma cerveja estupidamente gelada... E teve um riso nervoso. Mergulhou novamente nos próprios pensamentos, como se fosse realmente impossível lembrar-se de alguém que não ele mesmo e mais outras duas pessoas, cuja recordação lhe inspirava os mais baixos sentimentos.
Que sensação! É como sentir a vida murchar, ficar ressequida, morrer. Antes, nada estava como está agora. Mudou, mudou tudo! E tão de repente... Quando realmente dei por mim, já estava envolvido nesse turbilhão de acontecimentos. E nada mais será como era há pouco tempo atrás... Talvez fosse melhor não ter querido subir tão alto para não sentir tão vertiginosa a queda. Um emprego conquistado, um casamento feliz, que ainda respirava seus anos mais verdes... Mas de um e de outro sairiam meus dois traidores... Como é possível? Perdi muito, muito; se pudesse, gritaria isso para o mundo, ordenaria que a justiça fosse feita para aqueles dois que construíram a felicidade em cima da minha desgraça, dentro da minha própria casa! Isso chega a me causar até uma pressão no peito, acho que vou passar mal. Melhor parar um pouco. Calma, o tempo da vingança virá. Não dizem que é um prato que se come frio? Pois é, quando menos esperarem, vou fazê-los pagar por tudo, sem dó nenhuma. Não tiveram dó de mim, não vou ter dó deles.
Ah! Agora não sou só eu aqui, acabou de entrar uma moça. Que será que ela quer? Pediu uma cerveja, sentou sozinha, está um pouco cambaleante. O que terá acontecido? Está bem vestida, penteada, maquiada. Provavelmente trabalha fora e tem de estar apresentável. Como desconfiei, está nervosa sim. De onde estou ela conseguiria me ver, mas está absorta demais em seus pensamentos para notar em mim. A respiração dela está um pouco ofegante, os gestos inquietos, mas sobretudo os olhos revelam tudo. Ela volveu o olhar pelo bar e pelas poucas pessoas aqui presentes, mas parece que não viu nada nem ninguém. Está ensimesmada. Que terá acontecido?
Se alguém olhasse para mim, adivinharia o que estou passando? Estamos no mesmo estado? E ela? Terá sido a morte de alguém ou alguma traição sórdida? Parece que vai começar a chorar baixinho. E se eu fosse até lá? Sentaria ao lado dela e diria: por favor, moça, ouça minha história, compartilhe minha dor, nem precisa me dizer seu nome. Depois, me conte a sua, eu a ajudo como puder. Talvez a gente pudesse combinar a vingança juntos, não tem algum filme com um enredo parecido? Provavelmente sim, acho que todos os dramas possíveis já passaram pelo cinema. Porque não vou até lá?
Ela começou mesmo a chorar bem fininho. Se me achar impertinente, não faz mal, o que me faria mais mal do que o que estou passando agora? Eu gostaria que alguém sentasse ao meu lado e me dissesse: o que houve? Porque ela não gostaria? Ou pode estar arrependida, será que fez mal a alguém? Ah! deixa para lá. Cada um vive sua dor e pronto. Deixa ela quieta lá e eu aqui. Eu não conseguiria fazer nada mesmo por ela, nem ela por mim.”
O rapaz desviou os olhos da desconhecida e passou a olhar para o copo, novamente mergulhado em seus próprios pensamentos. Depois de minutos assim concentrado, ergueu a cabeça e deu com os olhos dela em si. Ambos trocaram um olhar de cumplicidade, como se a moça tivesse tido os mesmos pensamentos e aguardasse que ele a visse. Instintivamente trocaram um sorriso triste e o rapaz não mais hesitou: ergueu-se, tomou o copo nas mãos e aproximou-se, pois sentia que somente ela, companheira de dor, poderia compreendê-lo integralmente; e somente ele, no auge de seu sofrimento íntimo, poderia oferecer a ela um ombro amigo, para chorar e chorar.

BOA NOTÍCIA

Ana Lucia Santos fez sua inscrição no Concurso de Poesias "Poetas Caiçaras", promovido pela escritora Vanessa Hatoon, e seu trabalho foi selecionado entre mais de 100 trabalhos inscritos. Isso significa que nossa parceira do Laboratório do Escritor vai ter um de seus poemas – Tábuas - publicado, ao lado de outros 29 ganhadores, num livro a ser editado brevemente.

Azáleas

Trabalho coletivo a partir da palavra azáleas

Pela janela aberta da sala, o pai observava a filha, recém-chegada após a ausência de dez anos, colher azaléas, enquanto o sol ainda se mantinha no horizonte. Por mais que ela tivesse mudado, ainda conservava o jeito de menina no corpo de mulher. Tinha guardado também os mesmos gestos delicados da mãe. (Barbara- usei o verbo no pretérito imperfeito para ficar mais forte)
Nostálgico, o pai pôs-se a relembrar de quando a filha tinha nascido.
Não podia dizer que ela era o fruto de um grande amor. Casou mais por conveniência do que por qualquer outro motivo, mas quando a viu no berçário, a paixão foi instantânea. Outros filhos vieram, mas o amor por Marina foi sempre diferente. Os irmãos, Jonas e Lucas, sentiam ciúmes e não a reconheciam como irmã de sangue. Era negra.
As discussões eram constantes nas reuniões familiares e sempre seriam. Marina sentia-se mal e ficou pior quando seus irmãos a venderam a um mercador persa de passagem pela cidade.
Como poderia chamar isso de irmão? Vender a própria irmã era coisa do demônio. Apesar de que, naquela época, fosse comum essa transação, para qualquer cristão era uma atitude inaceitável. Por essa razão, e ultrapassando a ética e a moral, a menina resolveu vingar-se um por um.
Começou pelo irmão mais novo. Explorando seu lado jogador, arrumou um grupo de jogatina para ele acabar com seu dinheiro.
Fez o outro irmão perder-se na bebida e nas mulheres, principalmente na prostituta que lhe arranjara. Mas quando chegou ao pai, que a tudo assistia enclausurado na velhice, pediu perdão e quis voltar no tempo, no belo tempo em que colhia azaléas.

domingo, 1 de novembro de 2009

BALBÚRDIA

Eliana Pace

- Bom dia, bom dia, bom dia, bom dia a todos. Vão todos bem? Bem não devem estar, ou não nos encontraríamos aqui, nesta sala de espera.
- Ah, obrigada pelos elogios à minha elegância. Este tecido da minha roupa é caro, é Príncipe de Gales.
- Vestida para ir a um casamento? Imagina... Minha mãe exigia que estivéssemos sempre bem arrumados na hora de ir ao médico. Então, caprichávamos mesmo. Nas festas, então...
- Estou sempre impecável. Acordo às 5 horas da manhã, me arrumo toda, faço maquiagem e vou varrer a minha calçada na maior elegância.
– Ouço a previsão do tempo na rádio. Mas logo que ouço, esqueço. Então, vim de chapéu porque achei que ia fazer sol. Os óculos são para proteger meus olhos. Estranho a claridade.
- Isso não é guarda chuva, meu senhor, é guarda sol.
- Meu casaco está sem um botão, já vi. Caiu e não consegui encontrar outro igual. A senhora vai querer criar uma briga comigo, já vi tudo.
- Que mania essa de se queixar dos brasileiros. Tá todo mundo de carro novo na rua, não está? E ficam se queixando. Não vejo ninguém passar fome.
- Gosto de comer bem, e muito. Repito mesmo qualquer prato. E não como fora não, tem muita sujeira na comida que servem nos restaurantes. Imagina que outro dia comprei um bolo que estava com cascas de queijo na massa. Vai ver que era pra aumentar o peso. Que nojo. Fui na padaria reclamar, ora se fui. Disse pro dono: chama a atenção do padeiro.
- Faço belos jantares pra mim toda noite. Quando alguém me liga, aviso que se quiser jantar comigo é só aparecer... Hoje, minha senhora? Não, hoje não vou fazer jantar não, nem adiante se convidar...
- A senhora está guerreando comigo de novo? Vai te catar, vai.
- O que eu estava falando mesmo? Ta vendo? Se o senhor me interrompe, eu esqueço o que estava falando. Agora não adianta mais, esqueci e pronto. Venho esquecendo as coisas desde que fui assaltada e levei um tombo. Tenho que ir falar com o Serra. É, o governador.
- Como, vocês já vão embora? Ah, vão entrar na consulta, ta bom. Volta depois pra gente conversar mais um pouco.

O ENTERRO DA MINHA SOGRA

Tio Zinho (do Paulo Mauá)

Minha sogra morreu e resolvi homenageá-la com um caixão que parecia um carrão desses cheios de acessórios. Parecia uma dessas SUV (no caso dela, Sogra em Ultima Viagem). A carroceria do caixão em fibra de carbono para evitar vazamento de material tóxico na decomposição e contaminar o lençol freático.
Porta-malas grande porque ela era uma grande mala e eu queria as duas enterradas. Só que em vez de ser sem alça, ela era com alça e somando aos 130 quilos, pesava ainda mais. Dois canos de escapamentos: um para o veneno, que mesmo depois de morta ela continuava a eliminar, e o outro para os gases propriamente ditos. A mulher peidava demais. Porta-trecos à vontade: um para a dentadura, outro para spray de laquê e outro para remédio de unha encravada.
Aquele vidrinho do caixão que deixa o rosto à mostra era filmado (transparência zero). E aí é que apareceu um problema: o chefe dos coveiros, que também era um funcionário caxias, não queria permitir aquele vidro. Achava que tinha que ter alguma transparência. Quando tirou o filme, se assustou com a cara dela e além de permitir o filme, exigiu blindagem porque alguém no velório podia se assustar ainda mais com o rosto que parecia do Ronaldinho Gaúcho chupando limão. Mas pessoas que gostavam muito dela acharam a aparência serena.
No painel do caixão, para evitar o mau cheiro, um sachê de 10 quilos de creolina em pó aromatizava o ambiente.Uma TV de 7” passava os programas gravados do Silvio Santos e da Hebe Camargo. Cinto de três pontas para evitar, em caso de colisão, que a velha fosse projetada para fora. Ninguém queria que ela saísse mais de lá. Ah: os três pontos eram de solda.
Finamente, era hora de colocar aquela SUV no buraco. Mas antes de cobrirem com terra, eu falei: desliga a tração 4x4 para garantir que o caixão não saia mais.
Mandei escrever na lápide: Adeus tribufu, I miss you.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Insensatez

Trabalho coletivo a partir da palavra Insensatez

A insensatez impera em nossos dias atuais. A falta de bom senso faz com que os indivíduos ultrapassem os limites do razoável deixando insuportável a vida de muitas pessoas.
No telejornal da noite, uma notícia me chamou a atenção: “Uma mãezinha ainda muito jovem, após dar a luz a uma criança, colocou-a em uma caçamba, destas para entulho, virou as costas e foi embora”.
O repórter apressado, cumprindo o timming do jornal, perguntava à jovem descabelada e desnutrida o porquê de tão insólito ato.
Insólito? Pensei eu. Não vejo nada de insólito. A caçamba de hoje é a mesma caçamba de ontem, onde ela também tinha sido deixada ainda criança, mas isso ninguém quer ouvir e o tempo do jornal é demasiado caro para explicações estruturais.
O jornalista ficou assustado com o que ouvira e a alma atrapalhada com a mistura de raiva e pena, da mulher e da criança. Perguntou ao vivo e a cores, para que todo o país soubesse da coragem dele.
- E a senhora, como se sente com este ato?
- E o senhor, neste terno de rico, o que pensa da vida?
O jornalista que não esperava em nenhum momento esta pergunta mordaz fingiu que não escutou e continuou a reportagem. Naturalmente, deveria esperar esta reação pois os mais favorecidos se dizem solidários com os mais fracos, mas se for para mover um neurônio com o objetivo de melhorar a realidade deles, é hora de se esquivar.
Então, eu é quem pergunto:
- Você acha que com esse gesto irá resolver o problema da criança?
- Você acha que é só mostrar a dura realidade que todos conhecem?
De belas palavras o mundo está cheio. O inferno também. Ninguém queria ouvir falar da mulher que havia sido colocada numa caçamba fazia muito tempo, a noticia não estava na mídia. Mas queriam saber do bebê na caçamba, da notícia de hoje.
O que poderia ter sido notícia ontem, já era. Checar a raiz do problema daria muito trabalho. Uma pena, pela visão curta do profissional. Poderia render-lhe um bom prêmio como reportagem destaque, seguido de um livro reportagem, com um fato que se arrastou de uma geração para outra. Se ninguém se importar em buscar a causa, quanta violência desencadeará para frente? Onde está a responsabilidade social de todo e qualquer cidadão?
Talvez na insensatez e na falta de conscientização daqueles que viram as costas para um problema social.

A SALVAÇÃO

Thays Morales


Nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante. Situação nada comum nessa época do ano, mas a primavera, este ano, surpreendia pela intensidade e durabilidade das chuvas. Tanto que o homem vem interferindo na natureza, durante décadas e décadas, com sua enorme capacidade de destruição, que muitas vezes tem-se tornado vítima de sua própria ação maléfica.
Lembro que algumas semanas atrás, assistindo ao noticiário das 8, fiquei muito comovida ao ver uma cena tão impressionante quanto heróica. Felizmente, ainda há no mundo seres humanos tão extraordinários nas suas atitudes: salvando a vida de seu semelhante e colocando a sua própria em segundo plano. Foi isso que vi com detalhes no jornal e em meio a tantas decepções com nossa espécie, senti um orgulho enorme de nós, humanos.
Uma mulher, usando um capacete, tentava salvar sua moto durante a enchente, numa cidade do interior de São Paulo. Dois ou três homens gritavam para ela largar a moto enquanto um deles segurava com força uma corda que sustentava um outro homem que, por solidariedade, se agarrava à moça na tentativa de evitar sua morte, pois a correnteza era violenta e impiedosa e dela dificilmente alguém escaparia com vida.
No momento em que vi a mulher sumir, embaixo d’água, pensei que mais uma vida estaria perdida, como tantas outras. Assisti pela televisão à dor do homem que pensou ter fracassado na luta pela vida de outrem. Mas, mesmo com toda a enxurrada e a agressividade das águas, um milagre parecia ter acontecido. Porque, depois de alguns minutos tensos e eternos, apareceu uma mão fora da água em busca de socorro. A mulher estava dentro de um carro e tinha conseguido sair dele, tendo sua vida salva e protegida, mais uma vez, com a preciosa ajuda do mesmo homem desconhecido de antes.
Chorei ao ver o resgate da moça e a alegria de homens que nem a conheciam, mas que foram fundamentais no curso da sua história. É espantoso como nós, seres ditos humanos, somos capazes de atos louváveis iguais a esse, mas, também, capazes de causar tanta destruição e interferência na natureza a ponto de sofrermos as piores conseqüências, como no caso das enchentes.
Nós destruímos a natureza sem pensar nas conseqüências, durante anos e anos, para depois nos perguntarmos porque tanta enchente, tanto desequilíbrio. Está na hora de agirmos como esses homens. Eles salvaram uma vida. Nós temos que salvar o planeta.

Abel e o irmão

Paulo Mauá

Panos ensangüentados, barbas mal feitas e corpos confusos.

A precária trincheira era o resultado da esperança ceifada dos que defendiam o arraial até o último respirar. Para os dois rapazes, poderia ser o último colo.
A quarta expedição, formada pelo exército do governo federal, homens de confiança dos fazendeiros locais e membros atuantes da igreja, avançava implacavelmente sobre os últimos resistentes. A ordem recebida de que ninguém deveria sobreviver para contar a história estava estampada no rosto de cada soldado.
Aos capturados, a degola. O único jeito de sair vivo daquela tragédia era estar do lado mais forte ou fugir como rato do mato.
Abel e o irmão mais velho estavam apavorados, sem ferimento aparente, sem munição, misturados a restos de gente de olhos voltados para o céu de um azul permanente à espera de um milagre. Poucas eram as alternativas de sobrevivência.
Restava sim, a peixeira na cintura e a vontade aperreada de vencer, mais uma vez, um momento crítico na vida. Estavam munidos de fé e perseverança perante o estado das coisas e das pessoas do nordeste brasileiro.
A tela triste pintada com os pincéis da fome, seca, violência, abandono político, foi pano para o beato Antonio Conselheiro criar uma cidade com mais de 5000 casas de pau a pique e uma multidão de fiéis. Prometia, com populismo e inteligência de líder nato, a nova república com fartura de trabalho, comida e a condição do retorno à monarquia.
Os dois irmãos buscaram por tanto tempo o reino encantado e um rei de coração aberto e pleno de boas intenções.
Abel nasceu, a mãe morreu e depois de uma década abandonados no pó e vivendo de resto d´água, ele e o irmão largaram o nada e tomaram a trilha para o oeste do sertão baiano. Conheceriam o tal de mar, grande lago com gosto de sal, verde como os olhos de Abel. Fincariam o pé em uma pacata aldeia de pescadores e teriam filhos, casa de verdade, uma mulher para acarinhar e uma jangada.
Mas, vira aqui, vira ali, calor demasiado na moleira e desorientados, rumaram para o norte do estado. E nada de aparecer o mar. Há um ano e meio depararam com o amontoado de pernas e miséria chamado Canudos.
A acolhida inicial dos moradores foi de imensa alegria para que os dois ficassem e criassem raízes. Com o passar do tempo, o paraíso cantado na literatura de cordel não era muito diferente do lugar onde haviam nascido.
O íntimo da alma, assustado com o fanatismo dos jagunços e dos sertanejos desempregados, entrava em desespero com o assobio das balas sobre as cabeças. O contingente de inimigos era maior que os anteriores e não parava de avançar.
O irmão mais velho pressente o que está para acontecer e toma a decisão:
- Corre, Abel, vem, vem.

Ergue-se da vala fétida, puxa o braço do irmão e, destrambelhados na direção oposta do batalhão de assassinos, tropeçam em corpos e quimeras abandonadas.
A última cerca que limita a vila está a menos de cinqüenta metros.
O som dos invasores está distante, como se pertencesse a um passado sem volta. Isso é bom sinal. Já podem escutar a melodia matinal do juriti, sentir o frescor da sombra das árvores copadas do quintal da nova casa e os respingos do riacho sinuoso no fundo do sítio fértil.
Os passos ligeiros das sandálias de couro cravando o chão e a respiração ofegante dos irmãos ditam o ritmo da alucinada corrida. A linha de chegada está próxima. De repente, um som agudo precede o barulho seco de um corpo no solo árido.

O mais velho pára, gira o tronco e vê um saco úmido de carne e suor. De joelhos, segura com carinho a nuca do irmão.
- ... o que aconteceu ? Porque paramos?
- Calma, Abel. Cê vai ficá bem. Respira fundo.
- ... eu... tô bem...

Naquele instante, a ilusão do mundo justo está desaparecendo.
- ... estou com sono... quero dormir ...
- Não desista. Olha pra mim. Olha pra mim !!!
- ...noite passada... tive um sonho...

O irmão tentava estancar o fluxo de sangue sem sucesso.
-... sonhei que chovia uma chuva colorida... todas as cores... sem parar... chovia tanto... um jardim... muita árvore... frutas... parecia um açude bem grande... que nem deve ser o tal do mar... devíamos ter ido pro mar... verde...
- Ainda vamos ver o mar. Não feche os olhos. Fica comigo !!!

Uma avalanche de passos apressados, gritos e galopes cresce lentamente.
- ... e chovia... dia sim, outro também... e nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante... a gente pegando os figos... de dar água na boca... o mais bonito pra mãe...

O som avassalador dos invasores aproximava-os da chacina.
- ... que barulho é esse... é a chuva ?
- É. A chuva colorida tá vindo.

No abraço exagerado, a peixeira atravessa Abel como beijo fraterno de misericórdia e antes que os fuzis do pelotão os alcance, ela desfere mais um golpe. O último.
Os recém chegados crivam, com centenas de balas inúteis, os sonhos interrompidos de Abel e o irmão.

CONVERSA DE BAR

Antonio Taveira

─ Uma cerveja estupidamente gelada...
Enquanto o garçom se afasta para atender ao meu pedido, olho ao redor do bar quase vazio àquela hora. Espero que aqueles dois não demorem - penso... Mas logo sinto um tapa leve nas costas.
─ Já que foi o primeiro a chegar, ganhou o direito de pagar a conta. Garçom, traz mais dois copos.
─ Aposto que vocês fizeram de propósito, ficaram escondidos esperando eu entrar sozinho.
─ Nós jamais faríamos isso com você!
─ E então aquele timinho tomou outra surra do Palmeiras...
─ Nem me fale, dessa vez acho que o Luxa não ta com nada. Mas não vamos falar de futebol, porque se meu time está lá embaixo e esse ano não dá mais nada, o seu também não está tão bem.
─ Pelo menos já tamo na libertadores. È nóis na fita, mano!
─ Mas sabe que time sem passaporte não viaja prá muito longe, vai cair na primeira fase.
─ Esse ano vai ser dos Porco e nem os Bambis vão chegar. Vamos mudar de assunto, mas não pode ser automobilismo, porque o Rubinho Pé de Chinelo deu uma esperançinha prá gente que já acabou. O Button vai levar e aqui no Brasil.
─ Vamos falar daquela nova secretária do advogado do 4° andar.
─ Quê que é aquilo cara? O velhote ganhou aquele avião em alguma ação, só pode ser, ele num ta com essa bola toda não.
─ Toma cuidado, cara, dizem que ela é caso do chefão da área da marketing. Ele que arrumou um lugar pra ela na empresa e prá num dar bandeira, colocou na advocacia.
─ Vocês vão querer beliscar alguma coisa?
─ Traz as pernas da Sheila Carvalho, ou então da Viviane Araújo.
─ OK! Como elas não estão no cardápio, vou trazer o de sempre: uma picanha fatiada no ponto e uma porção de batatas - da portuguesa, certo? Vou trazer mais uma cerveja.
O garçom virou as costas e voltou para o bar.
─ Você falou uma coisa e é verdade, hoje a dolorosa é por minha conta.
─ Que é isso, vamos ratear como sempre fizemos.
─ Me deixa contar esta história. Sabem aquele cara da exportação que se acha bonitão, metido a Don Juan?
─ Sei, o cara é o maior mala.
─ Dizem que já cantou todas do andar dele.
─ Então... Eu estava no cafezinho quando ele chegou e comentei com ele se tinha reparado naquela morena de cabelo curtinho da área comercial.
─ Espera aí, essa mina...
─ Calma! Eu sabia da história dela. Quando ele lembrou quem era, ficou todo animado e eu dei corda. É uma garota super meiga, carinhosa, além de ser bonita e ter um belo corpo.
─ Realmente é uma bela mulher.
─ Então, cara, que tal investir numa saída com ela? Se você conseguir, eu pago o motel. Se não conseguir, você paga o chopp.
─ Fechamos a aposta. Ele começou o flerte mandando bombom num dia, uma rosa no outro, uma revista feminina, uma ligaçãozinha para desejar bom dia. E assim foi indo, até que chegou o dia da cartada final. Mandou um belo arranjo de flores com um convite para um romântico jantar. Ela ligou agradecendo as flores e disse que daria a resposta às dez e meia na Cafeteria na entrada do prédio.
─ E como você ficou sabendo de tudo isso?
─ Depois que marcou o café, ele me ligou todo feliz já cobrando a aposta. Como eu não queria perder essa cena, desci antes deles e fiquei em uma mesa no canto fingindo ler um jornal. Eles chegaram e eu ouvi toda a conversa.
─ Você gostou das flores? E o convite está de pé?
─ As flores são belíssimas, muito obrigado, mas o jantar eu não vou poder aceitar.
─ Por que? Algum problema comigo?
─ Não tem nada a ver com você, não. Toda mulher gosta de ser mimada, receber atenção, presentes.
_ E ...
_ O problema, colega, é que gostamos da mesma fruta!

DICAS

Verbo Atender

1)Para pessoas, prefira a regência direta(atender alguém).
Exemplos: O médico atendeu o paciente
O prefeito atendeu os pedidos

2) Para coisas, use a regência indireta (atender a).
Exemplos: A garota atendeu aos pedidos do amigo
O homem atendeu à intimação

Atrás/Atraso/Atrasar - escreve-se sempre com s.
Exemplo: Atrás de você tem um cara estranho...

Trazer é o verbo, sempre com z
Exemplo: Garçom, me traz uma cerveja...

Esta conversa não tem nada a ver com você...ou
Esta conversa tem tudo a ver com você.

Haver é verbo

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A Valsa do Adeus

conto de Paulo Mauá

Introdução

Embora conhecida desde o século XV, quando surgiu na Alemanha, a valsa foi consagrada 400 anos depois, por meio da família Strauss, nos saraus vienenses e teve como fiéis seguidores Chopin e Ravel, dentre outros.
A valsa é um gênero musical baseado em compasso ternário, ou seja, três tempos moderados: um-tá-tá, um-tá-tá, um-tá-tá. Portanto, bastam três semínimas por compasso, onde cada semínima é representada por uma nota toda preenchida com uma haste.
A palavra valsa vem do verbo alemão Walzen que significa girar ou deslizar. Para dançar a madrugada adentro, é só seguir o ritmo.

1º tempo do compasso

Estou linda.
O espelho mágico confirma: deslumbrante.
As meninas retocam a maquiagem antes da entrada no salão de baile. Um arrepio percorre meus braços arrebatando o meu espírito e a face não disfarça a despedida do meu sorriso de menina. O peito ofegante prevê a mulher que vem por aí. Que venha!
- Tem rímel?
- Pode pegar.
- Obrigada.
Estamos alvoroçadas e prontas para a sonhada dança com os pares. Silvinha irá com o César. A Rô com o Gabriel. Não sei quem vai dançar com a Aninha Souza. A Aninha Clemente conseguiu fisgar o filho do prefeito. Mateus vai dançar com a Leila. Boa sorte pra ela. E pra ele também. Esses meninos, cheirando a terno alugado, são bonitinhos mas me despertam interesse apenas para um final de semana descompromissado. Quero mais.
Esta noite será a noite.
Se tenho medo? Confesso que sim. Mas sou Amarílis, a guerreira, como minha avó, e sei que a madrugada será a ponte de ida sem volta da terra das brincadeiras inocentes para o reino do ser mulher. Nada pior do que viver sufocada, com o coração marcado pela centelha da paixão improvável.
Adeus para o gosta desse, gosta daquele, panelinhas de comida, brincar de casinha e bonecas. Rasgo em definitivo a sensação ilimitada do faz de conta.
Estou pronta para suportar o amanhã. O risco será meu. Desde o dia em que fiz amor pela primeira vez com o Mateus, assumi o destino. Meu pai nem imagina que não sou mais virgem. Talvez ele saiba e nunca tenha me dito para não me deixar em uma situação constrangedora.
Ele sente até hoje a morte da mamãe, mas não posso me responsabilizar pelo estado sentimental dele nem pelo que ocorreu com ela. Só eu sei como as minhas veias pulsam desde então. A vida é um reino de fatalidades e conseqüências. Não tenho escolha.
- Vamos, meninas, os convidados estão esperando. Vocês são as estrelas de hoje. Quero ver todas sorrindo.
Pronto, a ponte elevadiça já está sobre o poço. Preciso girar meu destino e sair do castelo.

2º tempo do compasso

Estou suando e não sei se é calor ou nervoso. Nunca gostei de dançar e depois de viúvo, fiquei mais travado ainda. Vale o sacrifício pela felicidade de Amarílis. Elas vão demorar muito para aparecer?
Desde a morte de Suzana, tento ser um pai mais atuante. Não sou perfeito, pois não consigo ser o pai carinhoso, o pai príncipe, o pai herói e os outros pais que ela tanto precisa.
Onde está o Mateus? Achei que ela ia dançar com ele, mas a honra foi minha. Ele é simpático, educado, bom menino, ótima companhia para a minha filha, mas Amarílis considera-o infantil. Ela é quem sabe o que é melhor para ela. Às vezes me pergunto se ela ainda é virgem. Se não fosse mais, acho que teria me revelado. Minha bonequinha está deixando de ser criança para virar adolescente.
- Ela está uma mulher feita, né filho ?
- Mãe, a senhora é suspeita: neta querida, mesmo nome que a senhora, sei não.
- Ela já é uma mulher.
Mudaram as luzes, o som, acho que o portão vai abrir. Descem as primeiras meninas e a amiguinha dela da escola é logo a primeira. Nossa, a outra quase caiu. Lá vem minha princesa. Continuo suando frio. Que os céus me ajudem a deslizar pelo salão e não pisar no pé dela.

3º tempo do compasso

Em casa, a nuvem multicolorida de papéis de presente descansa sobre o sofá. A filha está apreensiva. O pai sente-se realizado, mas saudoso.
- Sua mãe ficaria muito feliz em compartilhar este momento conosco.
Amarílis desconversa:
- Olha, um colar de prata com um anjinho. Ganhei da vovó. Adorei.
O chuveiro ameniza o cansaço do pai. Amanhã será outro dia.
- Durma bem, querida.
- Você também. Te amo, pai.
- Também te amo.
Deitado, lembra dos convidados, da valsa com a filha, da falta que sente do colo da esposa. Os pensamentos entram na fase de turbulência do sono.
A porta do quarto abre silenciosamente.
Passos avançando em sua direção.
O movimento do lençol desperta-o um pouco e ainda confuso sente um beijo leve na nuca.
Será sonho?
Pequenos seios repousam nas suas costas.
Delicadas mãos deslizam à procura do seu sexo.
O susto estanca o coração de imediato e antes que possa girar o dorso, a mulher sussurra em seu ouvido:
- Pssst...faz de conta que eu sou a mamãe.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

DICA: Para escrever números

De um a dez, escreva os números por extenso: dois, nove, etc.

A partir de 11, o 11 inclusive, em algarismos: 15 jovens, 27 soldados .

Exceção: escreva cem e mil.

Use essa mesma regra com os ordinais: primeira hora, quinto aniversário, 15ª vez, 25º ano consecutivo.

PENSAMENTOS IMPERFEITOS

Ana Lucia dos Santos
Nunca entendi direito o comportamento dos brasileiros com relação às questões de princípios e ética. Sempre me incomodou a tendência das pessoas em quererem alguma vantagem, importando pouco o preço a pagar. Uma benesse qualquer, algum brinde, um prêmio, merecido ou não, o que me faz lembrar a frase popular “injeção de graça, aceito até na testa”. Ou aquela “propaganda do Gerson – jogador de futebol - em que dizia: “gosto de levar vantagem em tudo, certo!

Quando vi, nos últimos dias, o resultado de uma pesquisa que falava do perfil “ético” dos brasileiros, em que, mais de 90% das pessoas se declaravam contra práticas de corrupção, ao mesmo tempo em que 83% admitiam terem se envolvido em pequenos atos de corrupção, práticas ilegítimas, vendas de votos, etc., me senti de alguma forma contemplada em minhas inquietações.

Apesar disso, persistiu a vontade de compreender este fenômeno que me pareceu semelhante a um paradoxo, a um pensamento imperfeito. Todos nós sabemos que acontece exatamente assim, basta olhar ao redor, no cotidiano da vida de cada um de nós. Com toda a indignação com o tal perfil ético dos brasileiros, rememorando o meu dia, ainda hoje me flagrei cometendo dois pequenos deslizes. Um com o homem que veio entregar o gás, para quem dei uma gorjeta por ter trazido o botijão e colocado debaixo da pia; outro com o menino do supermercado que trouxe as compras, depois do esforço que fez pra subir com tudo no elevador, além de ter feito a entrega de bicicleta num dia de chuva. Para o menino, a gorjeta foi maior. Ambos os serviços já estavam pagos pelos empregadores, não sei se bem pagos. Mas tudo o que fiz foi estimular uma ética corrupta, a tal da gorjeta. Ou seja, fico indignada e me posiciono contra a corrupção, mas sem perceber, cometo pequenas transgressões. Senti-me envergonhada. Vergonha que me fez lembrar meu pai.

Era um homem honesto. Imagino que se ouvisse a notícia da pesquisa, oscilaria entre esbravejar indignado, intercalando com momentos de tristeza pelos cantos da casa, balançando a cabeça num gesto de desaprovação. Era do tipo de pessoa que perdia o sono por uma conta atrasada dois ou três dias. Na condição de filha, me orgulhava. Mas a verdade é que não herdei toda aquela rigidez. Se assim fosse, estaria há várias semanas sem dormir. Mas também não chego, ou não chegava a me achar parecida com os 83% dos brasileiros da pesquisa.

Apesar dos dois pequenos deslizes de hoje, saio em minha defesa, comprovando com uma situação emblemática. Há alguns anos atrás, tive um cargo de gerenciamento num serviço público. O cargo, modestamente, acredito, foi pela competência, embora também possa ter sido por conhecer pessoas que tinham poder para lá me colocar.

O problema é que eu não segui o “script” esperado pela família. Não tentei “colocar pra dentro” parentes desafortunados. E eram muitos os que me cobravam, dizendo: - É impossível que você, nesta hora, não pense na sua família, todo mundo faz isto, ajuda os seus, etc. Eu pensava, mas achava que não podia cair nessa esparrela. Por isso, acabei incompreendida e caí, sim, no ostracismo dentro da família, por sequer ter tentado dar uma força, indicar alguém. Até hoje ainda amargo um pouco deste isolamento.

Não sei se é o caso de se condenar os brasileiros. Há que se entender. Apesar de achar ser coisa para cientistas sociais e analistas de pesquisas, ainda assim, tentando apaziguar a consciência devido ao meu próprio envolvimento nos pequenos atos de corrupção, “meto a minha colher” e tento explicações.

Somos um povo que, na sua formação, viveu muitas influências. Quase 400 anos depois de ser “descoberto”, o Brasil ainda era uma sociedade que havia acabado de sair do regime escravocrata (sem esquecer que foi o último país a abolir oficialmente a escravidão). Naquela época, regra geral, os “cidadãos livres” e mais abastados tinham aversão à idéia do trabalho pesado, duro. Era coisa indigna, para negros e escravos.

Bem, se tomarmos distância e olharmos numa visão panorâmica o que aconteceu com o Brasil nos quase 110 anos seguintes aos referidos 400, que é onde estamos hoje, foi uma imensa transformação, quase um salto mortal dado da noite para o dia.

Do ponto de vista da longa história da humanidade, estes 110 anos significariam um pequeno lapso de tempo, como o passar das horas de uma noite. Corresponderia, numa visão kafkiniana, à metamorfose sofrida pelo personagem central de seu livro, que acordou numa certa manhã e havia se transformada numa grande barata. Só que no caso do Brasil, uma metamorfose invertida. Dormiu sendo uma enorme barata cascuda e acordou no dia seguinte como ser humano.

Neste caso, o Brasil vai precisar se esforçar muito, enfrentar o medo de rever conceitos, resgatar valores e princípios, ter comportamentos mais humanos. Ou, se não conseguir, como o personagem de Kafka metamorfoseado, morre como uma barata gigante e cascuda, da qual ninguém nem o mundo sentirão falta.

FAZ DE CONTA

Viviane de Almeida

Vamos brincar? De que? De faz de conta. Faz de conta, sabe? Você imagina que eu sou e eu deixo você imaginar. Nunca? Não acredito que você nunca brincou desse jeito. Quer experimentar? Sei, tem medo. Eu vou aos poucos.... e podemos parar quando você quiser.

Começamos com o tempo. Faz de conta que o tempo parou. Faz de conta que o meu cabelo é vermelho.

Falsa ou natural? Provavelmente você não saberia fazer essa distinção. O que é bom, porque a minha única alternativa é fingir que sou

Quer que eu faça de conta que sou ela? Eu faço. Não é difícil e por você faria qualquer coisa. Ficou triste? Falei alguma coisa errada? Já sei. Ela é insubstituível. Desculpe, só queria ajudar.

Tudo bem, eu entendo. Conhece as regras do jogo. Se quiser parar, é só levantar a mão.

Fala, eu não me importo. Estou acostumada. E os olhos, azuis ou verdes? Parecidos com os meus? Levemente, você diz. Então deveriam ser verdes. A luz do abajur engana. Disfarça.

Conheciam-se há muito tempo? Uma vida inteira? Que bonito. Ninguém hoje vive mais para sempre. Eu? Não quero falar sobre isso. Estou aqui para fingir.

Sente muito sua falta? Saudade é difícil, mesmo. E as mãos, como eram? Pequenas, delicadas. Aposto que eram pequenas. Assim, como de uma criança. Como eu sei? Observo as pessoas.

Sente falta dos dedos de fada dela. Pequenos. Redondos. Dispostos.

Quer ver eu acertar de novo? Não gostava de maquiagem. Tinha sempre a cara limpa. Está surpreso? Não fique.

Eu só observo as pessoas.

Era esse o nome dela. Bonito. Nome de princesa. Não chore. Eu entendo.

Vamos fingir que a minha mão é pequena. Estou tirando a maquiagem, espere um minuto.

Minhas mãos são pequenas, não uso maquiagem. Meu cabelo é ruivo e estão levemente presos com a presilha de pedras e flores que você trouxe. Não era desse lado que ela usava. Quer colocar?

Passe-me o espelho. Que colar lindo. São pérolas? Verdadeiras? Engraçado... Assim, quando vejo minha imagem refletida, minhas mãos parece que encolheram.

Quer que eu tire o esmalte? Isso não posso. A sua hora já terminou.

DICA: Este ou Esse?

Este – designa pessoa ou coisa próxima de quem fala.
Exemplo= Este livro é meu.

Esse – indica pessoa ou coisa um pouco afastada de quem fala.
Exemplo: Cuidado com essa cadeira.

A vírgula

Vírgula pode ser uma pausa... Ou não.
Não, espere.
Não espere.

Ela pode sumir com seu dinheiro.
23,4.
2,34.

Pode criar heróis.
Isso só, ele resolve.
Isso só ele resolve.

Ela pode ser a solução.
Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião.
Não queremos saber.
Não, queremos saber.

A vírgula pode condenar ou salvar.
Não tenha clemência!
Não, tenha clemência!

Uma vírgula muda tudo.

Campanha dos 100 anos da ABI - Associação Brasileira de Imprensa.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Ladrão na era da reciclagem

Rosi Caobianco
Construção de crônica/ conto com a inserção das seguintes palavras: CARTUCHO, COTONETE, CAROCHINHA, CONFISSÃO

Esta foi a manchete que estampou um jornal da cidade de Varginha, Minas Gerais, mostrando que não é só “ET” que aparece por lá, mas também um larápio de cartuchos reciclados. Pedro Fidalgo, um ex-detento, foi preso na tarde de sábado por policiais da região. Pego com a mão na massa, não teve como negar o crime. Ironicamente, ficou entalado na janela lateral da loja de um revendedor de cartuchos de tinta para impressoras diversas.

O desafortunado ladrão já era um antigo freguês da delegacia daquela cidade. Sua ficha contém várias tentativas de roubo, muitos deles realizados com sucesso. Desta vez não deu certo, para sua infelicidade, e o evento lhe rendeu mais um processo para juntar à sua coleção de malandragem.

Fidalgo, como era conhecido, ao deixar o local do roubo, tentou passar por uma janela basculante. Porém, como já não tinha mais o corpo franzino de anos atrás, nesta vez a fuga não deu certo. Com meio corpo para fora e meio para dentro, protagonizou uma cena tragicômica, podemos assim relatar. Ficou preso justamente em suas partes baixas. Todo esforço que era feito pelos policiais para tirá-lo de lá, rendiam-lhe uivos de dor. Precisaram chamar o Corpo de Bombeiros para cerrar a janela e livrá-lo do suplício por ele mesmo criado.

Concluída a maratona de desentalar Fidalgo, levaram-no para a delegacia. Dr. Prestes, o delegado de plantão, já o conhecia e logo falou:

- Você de novo por aqui, Fidalgo?
- Estava com saudades desta hospedagem? Muito bem, conte-me sua proeza desta vez.
Fidalgo fez cara de desentendido e não respondeu.
Dr. Prestes, sem muita paciência, bateu o punho na mesa e vociferou:
- Vamos, rapaz, não está me ouvindo?
Fidalgo continuou calado.
Dr. Prestes esbravejou mais ainda:
-Sargento Meireles, traga-me um cotonete. Acho que o infeliz não está me ouvindo, ou não está querendo colaborar hoje.
- Vou te dar mais uma chance, Fidalgo, comece a falar. O que estava fazendo naquela loja e para quem era esta mercadoria?
- Se não falar logo, eu mesmo vou limpar esses ouvidos para ver se me escuta e confessa de uma vez.
- Vamos lá... Tenho mais o que fazer.
Fidalgo percebeu que o Dr. Prestes não estava brincando. E passados alguns minutos, confessou sua famigerada proeza. Estava realizando aquele roubo para entregar a mercadoria para outro comerciante de cartuchos reciclados na cidade vizinha.
Dr. Prestes prendeu Fidalgo imediatamente e foi atrás também do mandante do roubo. Parecia que o caso renderia vários receptadores.
O acontecido foi uma festa para os meios de comunicação da cidade de Varginha. As fotos de Fidalgo entalado na janela geraram comentários por semanas e mais visibilidade para o meliante. Muitos puderam concluir que as refeições da penitenciária de Varginha fizeram muito bem a ele, pois engordou ano após ano e não se deu conta. Descobriu tarde demais que não podia mais passar pelos basculantes das janelas na hora dos furtos.
A justiça tarda, mas não falha, e chegou mais uma vez a hora de Fidalgo passar outra longa temporada atrás das grades.

O CARA DO XIXI!

MINI CONTO
Antonio Taveira

Exercício com as palavras: CARTUCHO – COTONETE – CAROCHINHA – CONFISSÃO

Beto, eu tenho uma confissão a fazer.
Sabe aquela historia que te contei do cotonete? Então, foi tudo conto da carochinha. Na
Verdade, o cara se urinou todo, enfiou um cartucho de papel na cabeça e saiu do bar com as calças molhadas e deixando um rastro de urina pelo chão.

Conversa de bar

Thays Morales

Uma cerveja estupidamente gelada... Enquanto o garçom se afasta para atender ao meu pedido, olho ao redor do bar quase vazio àquela hora. Mas que estranho, não entendi porque estava assim, tão deserto o bar. Fui lá tantas vezes e nunca vi o local desse jeito. Logo que o garçom chega com a cerveja, minha curiosidade me impele a perguntar o que tinha acontecido aqui.
Ele, com um ar de vergonha e constrangimento, me relata tudo em detalhes:
--- O senhor não sabe?
--- O que?
--- Faz uns dias, aqui mesmo na mesa em que o senhor está um crime aconteceu!!!
--- Meu Deus!!! Por que? Como foi?
--- Uma coisa esquisita. Foi por ciúmes.
---- É? Não me fala...
---- Sim, só que ciúmes de homem por homem. Tenho até vergonha de contar.
---- Por favor, conte.
---- Chegou no bar um casal, homem e mulher. Até aí, tudo normal, né? Estavam tomando cerveja, a mesma marca que o senhor toma, conversando, pareciam namorados.
---- Sim?
---- Em outra mesa, um homem de uns 40 anos, bem apessoado, não tirava os olhos do casal. Encarava mesmo, sem disfarçar. A moça percebeu e perguntou pro namorado se ele conhecia o homem, ele disse que não. Um pouco depois, ela levantou e foi ao banheiro...
---- E, depois, que aconteceu?
---- O senhor não vai imaginar!!! O homem da mesa em frente levantou, caminhou em direção ao rapaz, parou e perguntou: - “Você lembra de mim?”

Eu ouvi tudo enquanto levava mais uma cerveja pra mesa dele. O rapaz respondeu:
- “Sim, perfeitamente, mas preferia não lembrar. E acho melhor você ir embora que a minha namorada já está voltando”.
O homem retrucou: - “Namorada? Então, agora gosta de mulher? Que novidade é essa? Ela vai saber quem você é”.
O rapaz implorou: - “Por favor, não conte nada, te peço em nome dos velhos tempos”.
O homem continuou olhando pro rapaz, olhou pra mulher que já tinha voltado, e só deu tempo a ela de perguntar: - “Quem é você?”.
Foi quando o homem disse uma frase que nunca pensei ouvir, em toda minha vida de garçom:
- “Ele é o meu homem, e se não for meu, não será de mais ninguém.
Depois disso, olhou pro namorado da moça, tirou uma arma da cintura, escondida embaixo da blusa, e deu um tiro certeiro no coração do rapaz. . Em questão de segundos, o sangue se espalhou pela mesa do bar, se misturando às pequenas poças de cerveja, estupidamente gelada, da mesma marca que o senhor toma.

Conversa de Bar Portenho

Paulo Mauá

- Uma cerveja estupidamente gelada!

Enquanto o garçom se afasta, olho ao redor do bar quase vazio àquela hora. Respiro os tons tênues da madrugada que confundem minha vista. Não distingo as formas fixas das flutuantes entre os copos vazios. Sinto os pés firmes sobre o chão vacilante e a madeira sob meu corpo não é forte suficiente para o peso que carrego. A melodia não é a mesma de outrora, fruto da escolha, da distância, da solidão da alma.

Viajo no tempo e em um bar parecido, ela sai da toalete sorrindo, mexe nos cabelos, passa pelo balcão de bebidas e vem em minha direção com a assídua taça de vinho.

- É malbec ou syrah ?

Ela me responde com displicente encanto natural:
- E eu que sei? Só sei que quero tomar um vinho ao seu lado sem pressa. Faz tempo que...
- Faz tempo que não tomamos vinho?
- Não, Carlos, faz tempo que a pressa... deixa prá lá.

A década de 60 foi o símbolo das revoltas, cassetetes, perseguições a sonhos e esperanças. O sucesso da ousadia de Che Guevara, filho da província de Rosário e da classe média alta argentina, impulsionou uma geração de universitários a enfrentar ideais. Eu fui um deles. Ela também.

Conheci Mercedes após uma manifestação frente à Casa Rosada. Fugindo da polícia, tropecei nos arbustos da Plaza de Mayo, driblei pessoas e carros na Rua Rivadavia e me abriguei atrás do altar da Catedral Metropolitana. Um ateu como eu pedia a Deus que os incontáveis minutos de tensão acabassem logo. Percebi na penumbra que outro coração disparava no mesmo ritmo e no mesmo espaço. Uma jovem morena. A mesma que agora eu despacharia do meu futuro. Com o passar das reuniões clandestinas, me envolvi com grupos radicais e a morte recente de Ernesto me mostrava claramente que não poderia arrastá-la, conscientemente, para esse tipo de vida.

- Canta alguma coisa só pra mim. Canta?

Ela olha para o palco, vê o violão disponível e volta o rosto para mim.
- Só se você atender aos meus desejos.
- Mercedes, desejo que cante para mim. Para que eu nunca mais me esqueça da sua voz, da sua boca deliciosa. Vem cá, me dá um beijo.

Ah, vou sentir falta da seda desses cabelos fartos, véus negros emoldurando os olhos oferecidos. Sofrimento é estar ciente que o meu destino não poderia ser o mesmo que o dela.

- Carlos, onde você vai é um lugar...quer dizer... será que...

Não respondo. Mantenho-me atento. É um jogo de paciência. Ela sabe disso e logo corta o silêncio com precisão:

- Por que não posso ir com você? Ajudo no que for preciso. Mudo de nome, saio de casa com a roupa do corpo. Fiz um pacto comigo mesma que você seria meu companheiro para o resto da minha vida desde aquele momento da catedral. Não precisa casar comigo na igreja. Só quero ser feliz ao seu lado. Não posso desaprender a amar de um dia para o outro. Será que você me entende?

Não tive alternativa e apelei de vez:
- Você pararia de cantar por minha causa, Mercedes ?

Ela precisava escutar isso e continuei implacavelmente:
- Eu não consigo imaginar você parando de cantar por um ideal político. A música é sua essência e você canta para viver. Respira notas musicais, entrega o seu corpo ao ritmo. Assim é você. Eu só sei reclamar e esbravejar. Cada um de nós nasceu com um talento. Não quero carregar comigo a sensação amarga de que a moça mais bonita que conheci parou de cantar, e encantar, só para sonhar minha paranóia particular. Não faça isso comigo. Não faça isso consigo.

Achei que ela ia chorar, mas lutava com todas as forças e tentava me encurralar:
- Carlos, você define o destino das nossas vidas a uma escolha minha única: você ou a música?
- Você não tem que escolher nada. Eu escolho no seu lugar. Eu. Não torne as coisas mais difíceis.

O silêncio imperou e se tivesse ficado daquele jeito, talvez nossos rumos seriam outros.
- Agora, vai cantar aquela música que eu adoro. Solte a voz e me embriague o resto da noite. Eu fico aqui, sentado, comportado, guardando esse momento para o resto da minha vida. Proponho um brinde: gracias a la vida.

Pensei até que ela não ia corresponder, mas com coragem e voz embargada, brindou comigo pela última vez:
- Gracias a la vida.

Tomou o resto do vinho, colocou a taça vazia ao meu lado, baixou a cabeça e enxugou a lágrima discreta que corria por sua face redonda, com os próprios cabelos. Caminhou em direção ao palco, colocou a bolsa de pano ao lado do banco, ajustou o microfone, 1-2-3 testando, afinou o violão, fechou os olhos e lançou ao ar acordes vibrantes. O ambiente ganhou força mas ficou triste. Antes de acabar a musica, levantei e fui embora.

A militância ficou para trás em cartazes rasgados e cicatrizes no embate da teoria filosófica e a prática social.
Por diversas vezes, o infame espelho da manhã acusou-me de covarde travestido de terno cinza escuro. A vida esmagou, sem piedade, minhas fantasias e ilusões. Nunca mais sonhei meus sonhos. Nossos sonhos. Nossas vidas nunca mais se cruzaram. Nunca mais fiz amor como nas longas madrugadas estudantis e frias de Buenos Aires.
Cheguei a ir a um show dela há uns vinte anos atrás. Músicos tarimbados e melodias de cunho político envolventes. Na pausa entre os compassos marcados, meu coração inquieto gritava, em vão: eu te amo, eu te amo. A declaração de amor perdia-se nas arquibancadas lotadas de olhos atentos extasiados com a sua presença fascinante no palco. No fim do espetáculo, cheguei a me encaminhar para o camarim, mas desisti. Havia desistido de nós há muito tempo.
Hoje, sinto falta das nossas conversas de bar, o displicente som das cordas daquele violão, as mãos dadas nas passeatas, a correria, os sustos, as gargalhadas, os nossos gritos de ordem, a boca carnuda me sorvendo. Tudo ficou grudado na minha alma. Como el musguito en la pietra.

Alivio a gravata e chega mais uma cerveja. A discreta música ambiente desperta a minha mente: é a voz de Mercedes. Enquanto enche meu copo, o garçom fala sem pressa e sem pedir licença:
- O senhor sabia que ela chegou a se apresentar uma vez aqui? Foi uma noite fantástica. Quem viu, viu. Silêncio.
- O senhor quer mais alguma coisa?

Respondo que não com a cabeça.
Pausa.
Ele torna a me questionar:
- Deixo essa taça de vinho vazia aí mesmo ?

Não respondo.
Ele entende e sai, deixando-me apenas com a perpétua solidão do meu palco.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Prémio Literário Hernâni Cidade

Prémio Literário Hernâni Cidade
Modalidade: Conto

Tema: "Por favor, parem o Universo. Quero apear-me."


REGULAMENTO


1º - Podem concorrer a este prémio todas as pessoas que o desejem, desde que aceitem e cumpram o disposto neste regulamento.


2º - Na edição de 2009 a modalidade é: Conto

O tema é: "Por favor parem o Universo. Quero apear-me." (anónimo)

Elabore um texto a partir da citação.


3º - Cada participante só poderá concorrer com um único trabalho.


4º - Desse trabalho, que não deverá exceder três páginas, serão enviados cinco exemplares em papel formato A4, dactilografados, com espaço e meio de entrelinhamento e com caracteres de tamanho 12.


5º - O trabalho será subscrito com um pseudónimo e far-se-á acompanhar de um envelope fechado com a indicação exterior do pseudónimo e idade do concorrente. O envelope conterá obrigatoriamente a identificação do concorrente: nome completo, idade, morada com indicação do código postal e número telefónico para eventual contacto.


6º - O trabalho poderá ser entregue:

a) em mão na Biblioteca Municipal de Redondo

b) pelo correio para:

Biblioteca Municipal de Redondo

Prémio Literário Hernâni Cidade, 2009

Rua D. Arnilda e Eliezer Kamenezky, 43

7170-062 Redondo

c) por mail para premioliterariohernanicidade@gmail.com desde que seja enviado em anexo (Word) assinado com pseudónimo e a identificação do concorrente seja enviada no mesmo mail em segundo anexo e cumpra as restantes cláusulas do regulamento.


7º - O prazo de recepção dos trabalhos termina em 9 de Outubro de 2009, findo o qual se procederá à sua apreciação e classificação por um Júri composto por cinco elementos de reconhecida idoneidade, aos quais será vedada a participação no concurso, e de cujas decisões não haverá recurso.


8º - Serão atribuídos:

a) Três prémios: 1º, 2º e 3º - a que correspondem, respectivamente, as importâncias de 750, 375 e 250 Euros.

b) Menções honrosas a outros trabalhos que se distingam em número a definir pelo Júri.

c) Prémio Especial Juventude - para o qual só serão tidos em consideração os trabalhos dos concorrentes com idades compreendidas entre os 14 e os 20 anos inclusive.

d) Diplomas de participação a todos os concorrentes.


9º - O júri poderá não atribuir qualquer dos prémios desde que considere haver falta de qualidade nos trabalhos apresentados.


10º - Os concorrentes premiados serão antecipadamente avisados dos resultados do concurso, sendo os prémios entregues em cerimónia a realizar no dia 21 de Novembro (Sábado), pelas 16 horas, no auditório do Centro Cultural de Redondo.


11º - A entidade organizadora reserva-se o direito de utilizar os trabalhos recebidos, quer expondo-os publicamente, quer publicando-os na imprensa nacional ou regional ou ainda proceder à sua encenação e representação em tempo oportuno.

DICAS DE ESCRITORES DIVERSOS PARA ESCREVER MELHOR

É na vida que está a maior parte do material literário. As histórias estão bem próximas. Use a memória sem medo.

O que oferece o maior aprendizado para o escritor iniciante é a própria vida. Vá fundo e dê vazão às suas emoções pessoais.

Um escritor deve conhecer bem o seu ofício. Estude muito.

Carregue sempre caneta e papel no bolso - ou agenda eletrônica: anote tudo o que pensa e quer.

Leia muito, sem preconceitos: os clássicos e os contemporâneos, os brasileiros e os estrangeiros. Não deixe de ler o que você realmente gosta, na hora e no ritmo que quiser. E sempre guiado pelo prazer - quando a leitura parecer pura obrigação, esqueça.

Escreva regularmente e deixe os textos descansando. Volte a eles de tempos em tempos e os reescreva.

Não acredite no mito de que quanto mais louco você for e mais sofrimento tiver, melhor será sua literatura. Um escritor mediano com a cabeça no lugar tem mais chances do que um maluco.

Seu estilo é seu maior patrimônio. Ouça sua voz e seja fiel a ela. Não imite os escritores que você ama (nem os que você odeia).

Se você transita entre muitas linguagens (romance, conto, poesia, teatro, etc.), cuidado. No começo da carreira, é mais prudente escolher um caminho e aprofundar-se nele do que ficar pulando de galho em galho. Deixe a diversificação pra mais tarde.

A função da boa literatura não é entreter e deleitar, mas inquietar e provocar o leitor.

Oficinas literárias são boas experiências, mas é preciso saber tirar o melhor delas.

Em suas leituras, preste atenção a todo tipo de recurso narrativo que os outros escritores usam. Veja como mexem com estrutura, trama ou ausência de trama, construção ou não de personagens, ponto de vista narrativo, etc. ,

É útil saber o que os outros escritores pensam sobre seu ofício. Descubra o que eles dizem a respeito em entrevistas e depoimentos. Se possível, converse com muitos deles, mesmo que tenha de vencer uma natural tendência dos literatos para a introversão e o isolamento.

ESCREVENDO HISTÓRIAS DA CAROCHINHA

VIVIANE ALMEIDA
(Construção de crônica/ conto com a inserção das seguintes palavras: CARTUCHO, COTONETE, CAROCHINHA, CONFISSÃO)

Por que? Todos os dias me pergunto. Levanto, deito, ando entre um e outro... mas a pergunta não me larga. Espreita em todos os cantos. Tem coisas que nem a morte é capaz de apagar. Morte física ou psicológica. Não interessa, o cadáver continua em corpo presente.

Era um dia normal. Daqueles que existem em grande quantidade na vida de um ser humano, mediamente qualificado, mediamente informado. Vivido no médio.

Café tomado, passei na farmácia mais perto de casa para comprar um cartucho de cotonetes. Parecia que adivinhava que teria que ter meus ouvidos bem abertos. Reclamei do preço, respondi aos comentários de ocasião da fila. As pessoas adoram conversar em filas com pessoas que não conhecem. Acho que gostam de conversar com estranhos, uma espécie de “adultério mental”.

Minha mãe repetia inúmeras vezes: “Meu filho, não fale com estranhos”, “Meu filho, não aceite nada de ninguém”. Deve ser por isso que casei com a minha prima. Ela não era propriamente uma estranha e não era ninguém. Era linda, e minha prima.

Quando começamos a namorar, naturalmente escondido, fizemos muitas promessas e até pacto de sangue. Para falar a verdade, meio sangue, porque eu desmaiei na hora. Até hoje não suporto ver ou senti-lo. Minha mãe queria que eu fosse médico, mas a inabilidade com plasma e seus derivados foi um impeditivo. Gostava de histórias.

As da carochinha, as de reis e rainhas, principalmente as com um final feliz. Choro quando vejo filmes românticos e não consigo torcer para o bandido da história, apesar da simpatia de gênero pela masculinidade.

Marquei a data do meu casamento na véspera de Natal. Completáva-mos cinco anos de namoro. Família toda reunida. A minha família, a dela, ou para simplificar, a nossa. É a vantagem de casamento entre primos.


O casamento correu na tranqüilidade. Mães chorando, maquiagem escorrendo, dama de honra indisciplinada. Ela estava linda. Toda de branco. Pensei em desmaiar. Gosto de desmaiar. Acho que confere emoção à ocasião. E sempre há a desculpa da pressão e do calor. Era dezembro. Um ano depois do noivado. Rio de Janeiro. Nem as flores de laranjeira agüentaram.

Não desmaiei quando nosso primeiro filho nasceu. Uma menina. Guardei na gaveta o uniforme completo do Botafogo. “A culpa - disse um camarada meu - é da combinação”. Qual combinação? – perguntei eu. Ele respondeu - “do x e y”.

Ah! sexo de filho, então, agora é matemática. E eu que pensei que Deus tinha alguma coisa e ver com isso.

Comecei a me sentir diferente. Meio estranho. Não sabia explicar. Foi aos poucos. Como medicamento homeopático, mas esse acentuou os sintomas.

Sabe aquele sentimento, aquela angústia? Tentei várias vezes conversar com ela. A prima, que depois de todos esses anos parecia mais irmã - uma ligeira mudança na árvore genealógica da família.

Ela não queria ouvir. Andava envolvida com os cursos de meditação. Dizia que é para aprender o desapego. Aí pergunto, se era para desapegar, para que tanta ginástica, dermatologista, inglês e tudo o resto que nem sei do que se tratava. Estava começando a achar que o único apego para ela se livrar tem nome: o meu.

Nem isso ela quis. Preferiu manter o nome de solteira. Confesso que fiquei decepcionado, mas noiva pode tudo. Noivo só usa uma flor na lapela. Ela tem a igreja inteira.

Nem sei porque estou lembrando de tudo isso hoje. Faz tanto tempo. Deve ser porque abri a gaveta e encontrei o uniforme do Botafogo.

Estou tentando reunir os detalhes daquele dia, depois que comprei o cartucho de cotonetes e saí da farmácia.

Ainda está tudo muito confuso. Lembrei da minha mãe dizendo para não falar com estranhos. Falei com muitos estranhos na fila, naquele dia. Será por isso? Talvez, não. Ou será porque faltei na confissão antes do casamento? O Botafogo jogava no Maracanã. Tinha que ir. Fiz umas orações às pressas, pedi perdão pelo ato e pela omissão. A verdade é que o Botafogo perdeu.

Também sempre ouvi dizer que criança que não é batizada, não tem sorte na vida. Vira herege. Eu fui batizado, mas nunca soube de nenhum caso em que a que falta de confissão fosse responsável por isso.

Hoje já me perguntei, amanhã sei que vou voltar a perguntar. Não tenho pressa para descobrir o que foi que aconteceu.

Coisas de Criança

Coisas de criança
Paulo Mauá

Era uma vez a prefeitura, a praça da matriz com árvores copadas, o coreto, a escola com as crianças correndo no recreio, o pipoqueiro na esquina, a mercearia com as cores das frutas, o banco e o gerente de terno, as senhoras fofoqueiras nas janelas frente à calçada principal, o fazendeiro local e suas botas e todos os personagens de um conto da carochinha da singela vida naquela pequena cidade do interior.

O padre, de barriga avantajada e calvo, após a missa do final da tarde, começa a fechar lentamente as janelas da capela quando percebe que alguém está ajoelhado no confessionário. Parece uma criança. Pára o que está fazendo e desloca-se para o local onde o pecador mirim aguarda sua presença.

- Boa tarde, filho.
- Oi, padre Julião, é o Jorginho.
- Não precisa dizer o nome, tá bom ? Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Padre Julio estava acostumado com a informalidade na confissão inocente das crianças constantemente perseguidas pelo sentimento de culpa implantado pelas freiras do Instituto Liceu, o único colégio da cidade.

- Preciso confessar um pecado bem grande para o senhor, Pe. Julião. Um não, vários.
- Não consigo imaginar o seu coraçãozinho com tantos pecados, mas pode falar que estou aqui para ajudar você.
- Tenho mania de roubar coisas dos outros.
- Toda criança sempre pega alguma coisa aqui, ali. Isso é normal. Eu mesmo roubava galinhas do sítio vizinho para ter o que comer em casa. Mas me conta: o que você roubou ?
- Um monte de coisas: o canivete do seu Pacheco, o catavento do Paulinho, meu amigo da escola, a caixinha de cotonete do meu irmãozinho, o cachorro do guarda da estação, a coleira do cachorro dele, até a calcinha da tia Neca, calcinha não, calçona...
- Caramba... – exclamou o vigário tentando demonstrar surpresa e preocupação com os delitos do menino.
- Ah, tem a cesta de carambolas, caquis e cerejas da venda da dona Mirtes, a castanhola da Juanita, o cinzeiro da pensão Paiva, o cartucho da impressora da prefeitura, na verdade, os dois cartuchos, o colar da minha avó, o curió do seu...
- Tá bom, Jorginho. Já entendi.
- Entendeu nada, seu padre. Eu tenho essa vontade maluca que me queima o peito e eu vou pegando tudo. Tudo não: só pego coisas que começam com a letra C.
- Ahn... – exclamou o padre, agora realmente surpreso.
- Isso é normal ? Eu vou pro inferno ?
- Não sei se é normal, só sei que é pecado roubar coisas dos outros e você não vai pro inferno. Procure pensar em outras atividades que possam desviar a sua atenção dessa vontade incontrolável. Evite colocar as mãos nas coisas dos outros, qualquer coisa, começando com C, com B, não interessa a letra. O mais importante é você devolver tudo e se arrepender do que fez. Posso contar com você ?
- Pode sim. Quantas ave-marias tenho que rezar para ficar curado ?
- Reze 10 Ave-Marias, 5 Pai-Nossos e o ato de contrição ao final. Mas o mais importante é não fazer de novo e arrepender-se.
- Pode deixar. O senhor vai contar para alguém o que eu fiz ?
- De jeito nenhum, Jorginho. O que se comenta aqui, fica comigo e com Deus. Nem conte para os outros que eu roubava galinhas quando era criança, tá ?
- Puxa, estou muito contente. Estou aliviado. Deixa eu dar um abraço no senhor.

Antes que Padre Júlio pudesse responder, o menino levantou rapidamente do genuflexório e entrou no confessionário dando um abraço forte naquele senhor de batina. Ah, se todos os pecados do mundo se concentrassem nesses detalhes infantis.

Enquanto fechava o restante das janelas, o padre ainda ouviu os passos fortes e ligeiros do menino indo embora. Na penumbra foi deslocando-se até o pórtico da entrada da igreja e curiosamente não encontrou as chaves dos portões no bolso da batina. Onde foi parar o molho de chaves? Atônito, vasculhou o chão próximo, correu os olhos pelo corredor central, procurou, procurou e nada. De frente para o altar, reparou que mais alguma coisa iria fazer falta na celebração do dia seguinte.

Em casa, Jorginho abre seu baú de tesouros furtados, coloca as chaves do padre ao lado do coador de café da dona Rosinha do empório e contempla sua mais nova conquista como um troféu de ouro: o cálice da missa.