segunda-feira, 9 de agosto de 2010

LABORATÓRIO DO ESCRITOR - AULA 1 (07.08.2010)

O QUE PRETENDEMOS COM NOSSO LABORATÓRIO?

·Demonstrar que escrever pode não ser um dom, mas um processo, uma técnica.
·Mostrar que, no mundo da criação, é possível brincar com as palavras, inventar, experimentar, transgredir.
·Verificar que o ato de escrever é sempre uma busca de saber. Fernando Sabino dizia: Não escrevo porque sei, escrevo para saber.

COMO TRABALHAREMOS?

·Desbloqueando o medo de escrever, incrementando um interesse especial pela literatura, por questões da gramática e outros aspectos formais da escrita.
·Fazendo de nosso trabalho um campo de treinamento de palavras e vendo como se dá o processo de criação de uma obra literária atraente.
·Discernindo gêneros literários - crônica, conto, novela, romance, biografia – e orientar a produção de trabalhos dentro dessas características.
·Incrementando o interesse pela construção de textos literários, explorando suas possibilidades criativas, analisando objetividade, clareza, coesão e coerência de um texto literário.
·Em conjunto para aguçar o espírito crítico e estimular a troca de experiências por meio da observação de técnicas de construção de terceiros.

OBSERVAÇÕES

As aulas serão eminentemente práticas e constarão de exercícios de sensibilização individuais e em grupo. Teremos atividades individuais de produção escrita de contos e crônicas, sempre a partir de temas determinados e orientações técnicas dadas. Os trabalhos produzidos serão lidos em voz alta, analisados e debatidos em grupo e receberão críticas e sugestões do orientador. Os melhores trabalhos serão postados neste nosso blog e ficarão à disposição dos participantes também para eventuais comentários.

O QUE É O CONTO?

São pequenas histórias que relatam e narram uma história verídica ou lenda.
·É uma narrativa imaginária que envolve fantasia - narrativa real é a que envolve biografias, ensaios, textos históricos, grandes reportagens.
·O conto é, pois, uma ficção com unidade de tempo, espaço e ação.
·Conto possui= Uma ação /Um lugar /Um tempo /Um tom.
·É uma narrativa pequena que vai direto ao assunto. O conto contém apenas um único drama, um só conflito. Esse drama único pode ser chamado de "célula dramática".
·O conto é um relâmpago na vida dos personagens. Não importa muito seu passado, nem seu futuro.
·O conto clássico tem princípio, meio e fim. Um conto robusto pode ter cerca de 100 linhas e no máximo 200 linhas.

·MILTON HATOUM – É um escritor brasileiro contemporâneo premiado que começou a escrever romances. Seu primeiro livro de contos foi lançado em 2009. Ele diz que o Conto é mais denso. Deve ser breve e denso. É como uma fotografia que extrapola da moldura. É um recorte, um fragmento da realidade.
·TCHECOV, o grande escritor russo, ia mais além: ao escrever um conto, quase que suprima o começo e o fim e fique com o miolo.

·CADA CONTADOR TEM UM JEITO DE ESCREVER. Há os que ficam possuídos e há o artesão, que borda um texto, refaz. Cada um vai descobrir o seu caminho, mas o processo de escrita é doloroso sempre.
·Há um caminho para começar a escrever: idéia, sinopse. Toda história implica em uma estrutura.

CONTISTAS:

·Julio Cortazar;
·Jorge Luiz Borges;
·Clarice Lispector;
·Machado de Assis;
·Tchecov

DICAS PARA ESCREVER MELHOR

·É na vida que está a maior parte do material literário. As histórias estão bem próximas. Use a memória sem medo.

·O que oferece o maior aprendizado para o escritor iniciante é a própria vida. Vá fundo e dê vazão às suas emoções pessoais.

·Um escritor deve conhecer bem o seu ofício. Estude muito.

·Carregue sempre caneta e papel no bolso - ou agenda eletrônica: anote tudo o que pensa e quer.

·Leia muito, sem preconceitos: os clássicos e os contemporâneos, os brasileiros e os estrangeiros. Não deixe de ler o que você realmente gosta, na hora e no ritmo que quiser. E sempre guiado pelo prazer - quando a leitura parecer pura obrigação, esqueça.

·Escreva regularmente e deixe os textos descansando. Volte a eles de tempos em tempos e os reescreva.

·Não acredite no mito de que quanto mais louco você for e mais sofrimento tiver, melhor será sua literatura. Um escritor mediano com a cabeça no lugar tem mais chances do que um maluco.

·Seu estilo é seu maior patrimônio. Ouça sua voz e seja fiel a ela. Não imite os escritores que você ama (nem os que você odeia).

·Se você transita entre muitas linguagens (romance, conto, poesia, teatro, etc.), cuidado. No começo da carreira, é mais prudente escolher um caminho e aprofundar-se nele do que ficar pulando de galho em galho. Deixe a diversificação pra mais tarde.

·A função da boa literatura não é entreter e deleitar, mas inquietar e provocar o leitor.

·Oficinas literárias são boas experiências, mas é preciso saber tirar o melhor delas.

·Em suas leituras, preste atenção a todo tipo de recurso narrativo que os outros escritores usam. Veja como mexem com estrutura, trama ou ausência de trama, construção ou não de personagens, ponto de vista narrativo, etc. ,

·É útil saber o que os outros escritores pensam sobre seu ofício. Descubra o que eles dizem a respeito em entrevistas e depoimentos. Se possível, converse com muitos deles, mesmo que tenha de vencer uma natural tendência dos literatos para a introversão e o isolamento.


EXERCÍCIO EM AULA: CRIAÇÃO DE PERSONAGENS

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O ASSASSINO DA MALETA

Célia e Denise se conheceram no primeiro dia de aula do curso de Jornalismo, após um trote sofrido recolhendo moedas dos motoristas que passavam em frente ao prédio da Faculdade de Comunicação.
Terminada a brincadeira, que ambas achavam de muito mau gosto, calouros e veteranos sentaram-se em um bar nas redondezas para gastar o dinheiro arrecadado. Apesar de não concordarem com o tipo de recepção que lhes fora dada, as novas amigas gostaram da idéia de conhecer outros alunos enquanto jogavam conversa fora e bebiam algumas cervejas. As aulas haviam começado no auge do verão, o que fazia daquelas noites de estudo, um verdadeiro martírio.
Ao longo das primeiras semanas, as duas já pareciam grandes amigas de infância e durante as aulas passaram a tecer comentários sobre seus colegas de classe. Ambas tinham imaginação fértil e não demorou para que um aluno acabasse virando alvo de sua atenção.
- Dê, você notou como aquele Maurício é esquisito?
- Na verdade só tinha achado ele meio chato. Sempre tem posições tão inflexíveis nos debates.
- Dá uma olhada nas botas dele! Você assistiu aquele filme, “A morte pede carona”?
- Hahaha! Não assisti, mas realmente, aquelas botas são meio sinistras. Ainda mais neste calor!
- É menina, ele deve ser coveiro ou coisa parecida.
As duas acabaram rindo tão alto que o professor de Sociologia as notou e fez questão de que partilhassem seus pontos de vista com o restante da classe, esperando que ficassem constrangidas, mas Denise acabou fazendo uma observação pertinente à discussão em pauta.
Maurício, por sua vez, era um aluno mais velho, casado e com dois filhos. Era responsável pelo jornal da Ong ecológica onde trabalhava, mas como sua formação era em biologia, resolveu então cursar Jornalismo. Suas opiniões durante as aulas revelavam uma personalidade austera e intolerante quando o assunto era o descaso dos jovens por Ecologia e Política. Na maior parte do tempo, permanecia calado, com uma expressão de cansaço como a de quem trabalha duro para dar conta de todas as responsabilidades que devia ter.
Ainda assim, Célia e Denise passaram a reparar cada vez mais naquele aluno misterioso e teorizavam, sobre o ele fazia fora da sala de aula.
- Célia, olha! Olha a maleta que o Maurício trouxe hoje!
- Nossa! Que maleta enorme. O que será que tem lá dentro?
- Aposto que tem um corpo! Ele cortou alguém em pedaços e vai enterrar! Ai meu Deus! Ele é um assassino!
- Calma, Cé! Não deve ser nada de mais. Vamos perguntar a ele.
- Você está louca? E se ele for um assassino? O “Assassino da maleta”! Se perguntármos, ele nos mata!
- Hummm... Já sei! Vamos segui-lo após a aula.
- Ah, não sei. Vai que ele perceba.
- Não irá. Serei discreta.
Então, as duas amigas sairam da aula e trataram de não perder o suposto assassino de vista.
Maurício ajeitou a maleta e subiu em sua moto, sem notar que suas colegas o seguiam. Rumava em direção ao centro da cidade que, além das boates de strip-tease e casas de prostituição, era também onde se localizava o maior cemitério da região.
- Não te disse, Denise? Ele ele está indo para o cemitério. De certo, como é coveiro, pode se livrar do corpo sem que ninguém perceba.
- Acho que você está exagerando. Não acha que se houvesse um assassino à solta por aí, os jornais teriam noticiado?
- Às vezes não. De repente, não querem causar pânico à população.
Mal Célia terminara sua frase e Denise soltou um grito seguido de uma freada brusca: Não havia notado o sinal vermelho e quase colidira com um caminhão.
- Droga! O perdemos de vista. – Disse Denise inconformada.
- Não perdemos não! Olha ele ali! – Célia apontava para um motoqueiro a uns metros de distância.
- Tem certeza? Eu sou meio míope e estou sem meus óculos.
Então, quando se aproximaram, notaram que aquele não era o assassino que perseguiam.
- Não esquenta, Célia. Tentamos novamente amanhã.
- Ao menos agora temos certeza de que ele seguia para o cemitério.
- Ainda não temos certeza de nada, Cé! Até onde sabemos, ele poderia estar simplesmente cortando caminho para casa.
- Ahan... Para mim é bem outra coisa que ele anda cortando.
Nos dias que seguiram após a perseguição quase fatal, a ausência de Maurício fora notada pelas duas amigas, o que só fez sua curiosidade aumentar ainda mais.
Quando finalmente Maurício voltou às aulas, alguns dias depois do ocorrido, parecia ainda mais cansado e desta vez, além das botas e da maleta, havia alguma coisa mais estranha a seu respeito: ele parecia estar salpicado de purpurina rosa!
- Denise, ele matou novamente e agora posso afirmar que foi uma mulher! Não teve nem a decência de tomar um banho antes de vir para cá! Acho que devemos avisar a polícia.
- Não vamos fazer nada até ter absoluta certeza do que está acontecendo.
E tão logo a aula terminou, as duas rapidamente se puseram a seguir Maurício que parecia ter pressa naquela noite. Conseguiram segui-lo de perto até o centro da cidade, onde estacionaram e fizeram uma parte do percurso a pé.
- Anda Célia! Iremos perdê-lo se continuar nessa velocidade.
- Ai, calma! Eu estou de salto! Malditos saltos plataforma! Vou acabar caindo aqui nessa buraqueira. E também não quero que ele nos veja.
- Tudo bem, mas tenta andar mais rápido. Opa! Para, para! Olha ele ali, conversando com aquela mulher na porta da boate.
- Essa não! Deve ser sua próxima vítima. Se não fizermos algo agora, ela estará em pedaços em breve.
- Vamos chegar mais perto e tentar ouvir o que estão dizendo.
As duas se esconderam atrás de um carro, mas conseguiram chegar perto o suficiente para ouvir uma parte da conversa entre Maurício e a mulher.
- Sim, sim! São mesmo de matar – dizia Maurício ao som das gargalhadas da mulher que devido à pouca roupa que usava, entregava que deveria trabalhar na boate de strip-tease.
- Ai, Mau-Mau! Você é mesmo uma comédia. Nos vemos depois do show então, certo?
- Claro, xuxu! Estarei esperando para saber sua opinião sobre o que conversamos.
Impossível saber quem estava mais descrente com a conversa, se era Denise ou Célia. As duas simplesmente se entreolharam: - “Xuxu”???
- Nossa, se é com esse papinho que ele consegue suas vítimas, ele não deve matar muita gente. – Comentou Denise ainda não acreditando que aquele homem de expressões tão duras estava tão à vontade conversando com uma dançarina de boate.
- Agora teremos que entrar e ver onde isso vai dar! Devíamos ao menos deixar a polícia de sobreaviso.
- Não existe isso, Célia! Ou temos provas concretas, ou estaremos encrencadas se fizermos uma falsa denúncia.
- Mas e se conseguirmos as provas quando for tarde demais? Não quero ser cúmplice de assassinato! – Àquela altura, Célia já estava com uma voz de choro.
Night club e American Bar” – go go boys e go go girls. Era o que se lia no letreiro do lugar que era um dos mais procurados do pedaço.
As duas entraram na boate tentando ser o mais discretas possível, mas logo foram notadas ao fazerem o maior escândalo quando o go go boy “Mau-Mau” apareceu rebolando no palco, trajando uma fantasia de mecânico que deixava grande parte de seu corpo à mostra.
- Denise, você está vendo o mesmo que eu?
- Não acredito! Aquele é mesmo o Maurício?
- É ele sim... Posso ser míope, mas aquelas botas e aquela maleta são inconfundíveis!
Apesar do estardalhaço, Maurício não havia notado suas colegas no bar da boate e fazia sua performance com a maleta de ferramentas que, ao ser aberta, liberava uma série de serpentinas coloridas e muita purpurina rosa.
Célia e Denise estavam aos risos quando “Mau-Mau” se aproximou nitidamente envergonhado por encontrar suas colegas de classe ali.
- O que fazem aqui?
- Nós o seguimos Maurício. Célia e eu achávamos que você era um assassino.
- Assassino? Estão malucas? De onde tiraram isso? E agora, o que pretendem fazer já que sabem o que realmente faço?
- Em primeiro lugar – disse Célia, já mais calma – devemos nos desculpar por nossa imaginação tão fértil. Em segundo, não contaremos a ninguém que você é gay. Ninguém tem nada a ver com isso.
- Não sou gay. Eu simplesmente faço estas performances porque um amigo meu me indicou e só o que ganho na Ong não estava dando para bancar todas as contas, ainda mais porque minha mulher está grávida novamente.
- Ela sabe sobre este seu outro emprego? – perguntou Denise.
- Sabe sim, mas por razões que vocês devem entender, também não comenta com ninguém. Aliás, ela costuma vir aqui de vez em quando. Nossos filhos não fazem idéia, mas não pretendo dançar por muito tempo.
- Não deveria se envergonhar do que faz! Você dança muito bem.
Tão logo Denise terminou de elogiar a performance de Maurício, os três se juntaram à mulher que estava com ele na frente da boate e conversaram por horas. As amigas malucas explicaram de onde tinham tirado a idéia de que ele fosse o “Assassino da Maleta” e Maurício explicou que quando mencionou anteriormente que “eram mesmo de matar”, se referia às botas que machucavam seus pés.
Após todo o mal-entendido ter sido esclarecido, Denise e Célia passaram a frequentar a boate onde seu mais novo amigo trabalhava. Conheceram sua esposa e passaram a fazer todos os trabalhos da faculdade juntos. No entanto, não demorou muito para as duas acharem uma nova “vítima” para sua imaginação aguçada e logo estavam as duas cheias de teorias sobre uma outra aluna da classe.
(Daniela Marino).

quarta-feira, 19 de maio de 2010

(CRÔNICA) MORRO DE SAUDADE

Malas prontas e um tempo só para relaxar. Do pequeno avião, lá do alto, o mar parece uma esmeralda gigante, brilhante e translúcida. Chegamos e dentes muito alvos nos sorriem dando as boas-vindas. Coqueiros enfileirados apontam o caminho do descanso. Sebastião nos avisa: - O bangalô está pronto! Queiram, por favor, me acompanhar.
Era a minha terceira estadia naquela espécie de paraíso. O lugar combina com a harmonia, mas por não gozar desse estado de espírito, saí de lá em débito nas duas vezes em que o visitei. Nas ocasiões anteriores passara a limpo as minhas uniões. Ali germinaram decisões que deram um desfecho a relações afetivas desgastadas. A paisagem perfeita não combinava com a tempestade interior que se instalara em mim. Sim, eu me sentia totalmente nublada no outono de 2005.
Voltar à ilha era um tira-teima. Eu me sentia ensolarada dessa vez, revigorada por um amor maduro e sereno, daqueles que a gente se sente acolhida, à vontade para se lambuzar e sorver até a última gota, como a saborear uma fruta suculenta, cujo néctar escorre pelos braços a cada mordida.
Reconhecia agradecida que ele adoçava o meu paladar e a minha alma, mas principalmente porque eu já experimentara a inanição. O amor de agora era valorizado pela bagagem do passado, como deve ser quando a gente aprende com os tropeços e tombos de outros tempos. Felizmente, as feridas foram cicatrizadas e o coração resoluto queria abraçar o afeto.
Longe da agitação e dos congestionamentos, no lugar a tranqüilidade nos invade por todos os poros. As praias não têm nome. Foram apenas numeradas para o turista poder se guiar. Da primeira à quinta, águas mornas e calmas, verdadeiras piscinas naturais, vegetação rica e temos boas horas de caminhada pela frente ou até que a maré suba nos lembrando que é hora de voltar.
O sol era uma presença amiga e constante naqueles dias claros, quase um milagre, quando lembrávamos que deixamos Salvador com o céu encharcado. E se o dia esbanjava luz, a noite também nos reservara um palco iluminado, só que quem garantia o show eram as estrelas. O firmamento era um tapete negro coberto de brilhantes e volta e meia um deles despencava sobre nós – eram as cadentes – Vamos fazer um pedido?
Eu na minha terceira temporada em Morro de São Paulo só sabia agradecer. Daquele inverno com ares de verão empresto o slogan local e repito para mim mesma: “Morro de São Paulo, morro de saudade!”
(Adriana Bispo).

(CRÔNICA) A BENÇÃO DA CRENÇA

Era 23 de abril. Dia de celebrar o santo guerreiro. Ogum ou São Jorge é um dos ícones do sincretismo religioso que o povo incorpora sem reservas. Há lugar garantido para a fé no coração do brasileiro. O nome não altera a essência de um soldado valente que enfrentou o exército e venceu o dragão. É a representação do mal sob controle.
Chove bem fininho e os devotos rezam para que, na hora da procissão, São Pedro em parceria dê uma trégua para a imagem do santo desfilar pelas ruas do Macuco. A missa das 19 horas promete grande público – comerciantes, donas de casa, crianças, empresários, trabalhadores portuários, afortunados, gente simples – todos unidos pela crença no santo destemido.
A igreja torna-se pequenina para a legião que deposita ali os seus desejos e a gratidão por mais um ano, livre das labaredas de muitos ‘dragões’ do dia a dia. No exercício da fé não há classes sociais, castas, bens ou status que possam nos apartar – temos em comum a confiança em um poder maior que nos garante a proteção.
Caminho rápido pensando na presença de Jorge em minha vida – sim, nos tornamos tão próximos que às vezes esqueço que, além de meu amigo, ele é um santo glorioso, mas não tem aqui um traço qualquer de desrespeito. É porque Ele é muito íntimo mesmo.
Percebo que um garoto emparelha a sua bicicleta comigo. Me regula dos pés à cabeça e fixa o olhar mais precisamente na minha bolsa. Por um momento eu gelo de medo, pressinto o perigo. De repente decido encará-lo e digo mentalmente: “Nem tente, daqui você não vai levar nada. Eu estou vestida com as roupas e as armas de Jorge, para que meus inimigos tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me toquem, tendo olhos não me vejam e nem pensamentos eles possam ter para me fazerem mal!”. Olho para o garoto e em cima da sua cabeça lá está Ele com o seu cavalo branco e a capa vermelha tremulando no ar... O menino abaixa a cabeça e segue o seu rumo. Respiro grata e aliviada.
Sigo o meu caminho e chegando à igreja mais uma vez reverencio a sua presença benfazeja em minha vida. Agradeço e renovo os pedidos por mais um ano. Antes de ir embora me aproximo de sua imagem. O coração bate forte. Me emociono. Ele majestoso em seu cavalo parece me fitar. Toco em seu joelho e sinto uma vibração que só experimenta quem se abre verdadeiramente para o divino. Me despeço com aquele conforto espiritual que me faz mais forte e abençoada. É a benção da fé!
E é bom registrar que no céu despontam estrelas, coloridas pelos fogos rubros da procissão. A chuva recuou para a multidão passar. Salve Jorge!
(Adriana Bispo)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

MINICONTOS E MICROCONTOS (24.04.2010)

Entrega
Prévia saudade de si mesma.
Apaixonadamente mergulhava nesse encontro tão esperado.
Solidão
Na cadeira de balanço tecia seu tricô para o único amor que lhe restara.
Seu gato angorá.
Extravagância
Tudo era novo naqueles sabores exóticos.
Alcachofra. A palavra já soara estranha.
Ela que fora criada à base de farinha de mandioca e água...
Fim do túnel
Escuridão. Anos demasiados mergulhados no abismo de si mesmo.
Tirado o curativo, enxergava o mundo resplandecente.
Impotência
Último desejo dele antes de partir da vida: sentir a doçura de seus lábios.
Estudara tanto para salvar vidas e agora nada a fazer.
Tudo que pode dar-lhe é aquele beijo salgado de lágrimas.
(Carla Ziemkiewicz)

MINICONTOS E MICROCONTOS (24.04.2010)

Farsa
Não sou por mim.
Existo reflexo.
Como a lua, o que brilho é luz do outro.
Casamento
Depois de vinte e cinco anos ganhara um brilhante que reluzia sobressalente sobre o passado.
Amizade, cumplicidade, alegrias e dores já tinham a dureza do tempo.
Despedida
Seus olhos e sentimentos deitavam sobre o passado.
A cena: um aceno na estação de trem.
Lamparinas
Águas desceram por Ouro Preto adornando de cinturas a geografia das ruas.
Hoje só lamparinas revelam a história desse passado.
Apaixonamento
Amanheceram com gosto de amêndoa. Cortinas dançaram na luz da manhã. Estavam de coração suspenso.
(Anita Bueno)

MINICONTOS E MICROCONTOS (24.04.2010)

Sabores
Caminhou pelo mundo, de tudo provou, mas quem pudera descrever os sabores do que sentiu.
Destilar
O menino sentou-se e observou seu pai destilar palavras feias ao ar.
Pensou: As boas guardamos.
Baleia azul
O pescador sozinho no barco olhava de longe a dança da baleia azul.
Na imensidão não havia solidão.
Bússola
Tantas dúvidas, tantos caminhos, tantas escolhas, mas nem sempre dá pra ir somente pro norte.
Fechadura
Ele tanto a desejava, mas não conhecia, não entendia. Quem poderia explicar?
Tão fácil se pudesse olhar o que ela era como por uma fechadura.
Uma escapadinha
Fecho os olhos, respiro fundo.
Cinco segundos, apenas uma escapadinha indo pra realidade e depois volto à fantasia do dia a dia.
(Daniel Salgado)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O SACRIFÍCIO

Alberto dá duas batidas na porta, a segunda mais forte. Logo em seguida surge no vão um vulto de mulher, uma silhueta sem feições nem voz. Ela o deixa entrar sem nada dizer e ele, sem nada entender, a segue até os fundos da casa, imaginando o motivo pelo qual alguém usaria vestes longas com capuz num dia quente como aquele.
Nunca havia estado lá antes. A casa era grande, mas parecia estar abandonada há muito tempo. A madeira antiga emitia sons estranhos conforme as pessoas andavam pelos cômodos. Sentia-se um cheiro forte de incenso misturado ao mofo que devia ter tomado conta dos móveis. Teias de aranha pendiam entre as portas e janelas, indicando que o sol também não devia ser visita constante.
Conforme caminhava para o interior do velho imóvel, Alberto observava atentamente cada detalhe, cada vão nas paredes como se tivesse um interesse particular no lugar, e à medida que se aproximava do quintal, o sinal de que havia outras mulheres no ambiente ia ficando mais claro. Não sabia ao certo, mas parecia ouvir cânticos e orações vindos do fundo do casarão.
Chegando ao quintal, notou que havia um grupo de mulheres vestidas tal qual a estranha que lhe abrira a porta: longas e pesadas vestes negras com capuzes que impossibilitavam que se vissem os rostos. Cantavam e oravam numa língua desconhecida e ao centro do círculo que faziam, uma delas dançava nua, junto a uma enorme mesa.
Alberto sentiu calafrios, mas sua curiosidade era tão grande que permaneceu calado. Queria ver onde tudo aquilo iria chegar.
A mulher que o acompanhava finalmente disse algo:
- Irmãs! Ele está aqui! O mestre chegou!
Alberto não entendia nada, mas gostou da idéia de ser chamado de mestre por um bando de malucas, ainda mais quando uma delas se encontrava completamente nua. Se sua esposa desconfiasse de onde ele estava metido, provavelmente o colocaria para fora de casa. Bom, quem iria contar? Ele com certeza não iria.
De repente, as mulheres começaram a se aproximar e fecharam o círculo ao seu redor, entoando cânticos na língua desconhecida, dançando e rodopiando freneticamente até que a mulher nua parou e, segurando um enorme punhal, disse:
- É chegada a hora do sacrifício e nosso mestre voluntariamente se ofereceu para que possamos agradar a Deusa. Coloquem-no sobre o altar e dêem início ao ritual.
Alberto, sentindo que sacrifício não deveria ser coisa boa, ainda mais com um punhal envolvido, gritou desesperado:
- Para tudo! Não sou mestre coisa nenhuma! Não quero ser sacrificado! Por favor, não me matem! Eu sou da dedetizadora.... Só vim fazer o orçamento que pediram! – e saiu correndo em direção à porta o mais rápido que pôde.
Uma das mulheres o seguiu e ao chegar à porta lhe perguntou:
- Então você não sabia o que estava fazendo?
- Não, me desculpe.... Vocês fiquem sossegadas que não contarei nada a ninguém.
- Não precisa se preocupar. Não é o que parece.
- A senhora não precisa me dar explicações. Outra hora eu volto para tratar do orçamento.
- Tudo bem... Mas não faríamos nada com o senhor que não fosse gostar. Na verdade, acho que foi confundido com uma outra pessoa. Fique com meu cartão caso precise de nós!
Então a mulher lhe deu um sorriso e fechou a porta.
Alberto voltou ao serviço intrigado com tudo que havia acontecido e ao chegar a seu escritório, se deu conta do cartão em seu bolso, que dizia: Nefertiti – acompanhantes de luxo. Realizamos suas fantasias. Performances teatrais eróticas. Consulte-nos sobre nossos pacotes. Atendemos empresas e eventos.
(Daniela Marino)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

CONTO: O NINHO DO ESTRANGEIRO

Alberto dá duas batidas na porta, a segunda mais forte. Logo em seguida, surge no vão um vulto de mulher, uma silhueta sem feições nem voz. O retorno brusco não estava em seus planos. Tinha caído no mundo com sede de novidade e sem data para voltar, porém o infarto do pai abreviara tanta liberdade.
Quando Marta o recebeu, se deu conta de que uma década o apartara daquele lugar. Tinha os cabelos brancos e o rosto mais vincado e a governanta da casa vibrou com sua chegada.
Estava visivelmente ansioso, mas foi freado por ela. O coração do velho estava fragilizado e as emoções eram dosadas a conta-gotas, conforme recomendação do doutor. Tudo o que Alberto não desejava era causar problemas. Já carregava consigo uma coleção de rótulos negativos porque destoava daquela linhagem.
A temporada no exterior fizera com que o moço passasse a limpo muito do seu interior. A alma nômade nunca fora de fato aceita pela família e ele reconhecia que isso tinha o seu preço. Os amigos eram a família que ele se permitira escolher e tinha afetos espalhados por todo o globo, todavia, dentro de casa, era um verdadeiro estranho no ninho.
Contudo, voltar às origens tinha lá o seu sabor. Sentiu na pele o aconchego quando o aroma do café em dupla com bolo de aipim lhe saudaram o paladar. Não há no mundo sensação de pertencimento similar.
Seu quarto estava tal qual havia deixado. Era como se pacientemente o aguardasse. As raquetes de tênis, o mapa mundi colorindo a escrivaninha, cortinas entreabertas para ensolarar o ambiente e o ipê-amarelo dando as boas-vindas pela vidraça. No mural, as fotos do namoro interrompido, da saudosa mãe, do cachorro da infância e de tantas amizades que havia visto no aeroporto, em clima de despedida há 10 anos atrás.
Nas reminiscências do passado, ficou imerso pensando em suas raízes e em seu desprendimento. Depois da morte da mãe, cuja afinidade era de irmãos, não vira muito sentido em permanecer ali. O mundo dos negócios não era sua especialidade. Do pai herdara o nome e o gosto pelas viagens. E constatava aliviado que o braço direito da família era mesmo Virgínia, a irmã mais velha, forte como um jequitibá.
Descobriu-se com talento para a cozinha pelas mãos de Marta, e isso lhe fora muito útil em terras estrangeiras. Havia trabalhado em bistrôs franceses, cantinas italianas e deixara sua marca até nos pubs ingleses com drinks dos mais exóticos. Orgulhava-se bagagem de vida e da diversidade que experimentara - tudo isso havia permitido que Alberto resignificasse a sua história e os vínculos afetivos deixados na terra natal.
Marta o trouxe à tona avisando que o pai já estava preparado para vê-lo e o aguardava no quarto ao lado. Desde então, somente fotos, postais e e-mails os tinham mantido em contato. Quando viu aqueles olhos verdes marejados se deu conta que aquela era mais uma herança paterna. Abraçaram-se demoradamente. O coração resistiu ao teste.
Conversaram sem pressa sobre os países em que o filho ancorou. O pai sabia intimamente que seu garoto carregava no espírito uma porção dele mesmo. A identificação se dava pela via do pé na estrada. Sim, os Albertos eram cidadãos do mundo. Ele conhecia bem aquela inquietação, mas foi preciso o coração falhar para acolher amorosamente o jeito cigano do filho.
Alberto, por sua vez, nunca sentira tanta saudade de casa, do cheiro das comidas de Marta, do abraço apertado do pai e até do general que morava dentro de Virgínia. Por enquanto, as malas cederiam às gavetas. Era um estrangeiro reconhecendo o seu próprio território.
(Adriana Bispo)

quarta-feira, 14 de abril de 2010

LABORATÓRIO DO ESCRITOR (AULA DE 10.04.2010)

NOVELA

Alguns dizem que a novela fica entre o conto e o romance. Pode ser um conto mais extenso ou um romance mais concentrado.
Em comparação ao romance, pode dizer-se que a novela apresenta uma maior economia de recursos narrativos; em comparação ao conto, um maior desenvolvimento de enredo e personagens.
Nas novelas existe um protagonista e antagonista.
A novela centra-se numa só história e numa única personagem; pode haver outras, mas não têm igual peso na trama. São personagens instrumentais, acessórias. Já no romance se entrecruzam várias histórias e personagens principais.
A novela conta a história de modo rápido. Já o romancista se estende pelos capítulos com descrições, análises psicológicas e na transformação das próprias personagens.
A novela tem três unidades: unidade de tempo, unidade de lugar, unidade de ação. Segue em linha reta do princípio ao fim,
As tramas são simples e previsíveis. A narrativa pode ser em 1ª ou 3ª pessoa. De 80 a 120 páginas.
Exemplo: Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel Garcia Marques. Anuncia-se a morte no principio (a mãe sonha com a morte do filho) e todos sabem que ele vai morrer mas ninguém impede. O autor não esconde que ele vai morrer mas como todos os outros, não consegue barrar essa morte.
ROMANCE

O grande sonho de um escritor é escrever um romance = projeto de vida.
Importante: não devemos conceber um romance inteiro. Devemos partir de uma idéia sólida e ir passo a passo.
Romance é mais extenso que uma novela. Sustenta-se em episódios acessórios que retardam o desfecho, tem uma intriga mais complexa, uma técnica de narração menos direta. No romance tudo é permitido.
Estrutura é mais complexa, mais aberta, permite inovações, pontos de vista diferentes.
Pode conter várias historias, vários clímax, reflexão filosófica, comentários, cartas..
Uma novela ou um romance tem que ter um estopim, um conflito, que pode ser traição, morte, dinheiro, inveja, paixão, heroísmo, orgulho, coragem.
Em um romance, os acontecimentos são simultâneos e as tramas mais trabalhadas. Um bom romance tem que ter forma e conteúdo, linguagem e matéria narrada que significam coerência.
Exemplo de grande romance= Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, em que até a cachorra Baleia tem seus drama

BIOGRAFIAS/AUTOBIOGRAFIAS/MEMÓRIAS/PERFIS
BIOGRAFIA

É um gênero literário em que o autor narra a história da vida de uma pessoa ou de várias pessoas.
A biografia, na maioria das vezes, refere-se à vida de pessoas públicas como políticos, cientistas, esportistas, escritores ou pessoas, que através de suas atividades deixaram uma importante contribuição para a sociedade.
A biografia é mais vasta, mais complexa, exige muitos depoimentos. Tem elementos de reportagem, daí serem feitas, na maioria das vezes, por jornalistas que aprenderam a perguntar, ouvir, organizar as informações.
A pessoa não precisa ser famosa para ser biografada. A fama é relativa. O biografado tem que ter uma história de vida e um apelo universal para agradar a uma grande quantidade de pessoas, estimular a identificação com a história
Vida da pessoa é a vida da pessoa, o biografo não vai corrigir a vida de ninguém, nem enfeitar
Em uma biografia, não se pode tomar liberdade com os fatos, é inadmissível maquiar ou se intrometer na história.
Uma história de fracassos é melhor para uma biografia do que de sucessos. Uma vida de sucessos não rende necessariamente uma boa biografia
Nos EUA, existem varias biografias de um personagem só
O século XX marca o advento de uma modalidade do gênero até então desconhecida ou pouquíssimo cultivada: a biografia romanceada, na qual o autor recria, ficcionalmente, o material documental e de pesquisa coletado sobre a vida dos biografados. No livro 1808, que é uma biografia romanceada, personagens de ficção misturam-se com a realidade
MEMÓRIA - não é biografia, é um outro gênero
PERFIL pode ser uma pequena biografia em que o autor pode se colocar na história de vida do perfilado
No Brasil, o gênero biográfico teve ou tem seus melhores cultores em Joaquim Nabuco (Um Estadista do império - 1899); Lúcia Miguel Pereira (Machado de Assis, estudo crítico e biográfico – 1936; A Vida de Gonçalves Dias – 1943); Raimundo Magalhães Júnior (Machado de Assis desconhecido – 1955; Rui, o homem e o mito - 1965); Viana Moog (Eça de Queirós e o século XX – 1938).
RUY CASTRO
é um dos maiores biógrafos da atualidade. De um modo geral, suas biografias contam a vida de alguém depois de sua morte. Ruy Castro só escreve biografias de pessoas mortas: Carmem Miranda, Nelson Rodrigues – Anjo Pornográfico, e Garrincha – Estrela Solitária.
Exemplos:
CHEGA DE SAUDADE – não é biografia, é um livro de memórias de gente que fez a Bossa Nova. Vendeu 15 mil exemplares em 15 dias.
UM HOMEM ILUMINADO, sobre Tom Jobim, escrito pela irmã dele, Helena Jobim, não pode ser considerado biografia, mas memória.
TIM MAIA, do Nelson Motta, é memória pelos olhos do Nelson Motta.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

BYE, BYE, KABUL

(produção de um Conto com as seguintes palavras: penumbra/ Afeganistão/contra- senso/ sacrilégio/ jibóia/ destilar/ álibi/ papo-de-anjo)

Na penumbra do armazém, um incenso de mirra envolvia em névoa os pensamentos de Omar. Perdem-se na poeira do tempo as memórias do Afeganistão, berço conflituoso onde nasceu e cresceu. Desde tempos remotos, a guerra, seus escombros, perdas e todo tipo de contra-senso fazem do país uma paisagem da qual quase não se tem saudade.
Ah, saudade... Palavra bonita e doída que Omar aprendeu no Brasil. A caminhada até o país mais colorido que já pisou, de gente calorosa como o sol, foi permeada de desafios... Primeiro, a decepção para o pai, homem austero, respeitado, que construiu um empório de especiarias para o filho mais velho herdar e prosseguir. Depois, o tormento de encontrar a mãe a chorar pelos cantos, como se velasse um a um os guerrilheiros do lugar. Os irmãos também não aceitavam que toda uma tradição pudesse ceder à impulsividade do coração. Soava como um sacrilégio! Apenas a irmã caçula, Mira, vibrava com o provável desatino e sonhava com o dia de se render ao que não tem explicação.
As especiarias perfumadas fizeram fama em Kabul e cercanias. O hotel mais requintado da capital era cliente assíduo do empório e numa entrega de rotina, o som contagiante que vinha do saguão chamou a atenção do rapaz. Bailarinas curvilíneas serpenteavam feito jibóia a destilar encantamento na platéia.
A coreografia sensual, as vestes multicoloridas e o sorriso das moças criavam no local uma aura de festa e celebração que contrastavam com a sisudez de homens engravatados. Entre movimentos delicados e resolutos que brotavam daqueles quadris, a odalisca de um azul profundo fez Omar mergulhar num mar de águas desconhecidas. Quase perdeu o fôlego e nunca tinha sentido seu coração tão pulsante. Voltou à superfície com as palmas entusiasmadas dos espectadores.
Não demorou a descobrir que Lena, uma dançarina profissional, era brasileira em breve excursão pelo oriente. Os contatos com a equipe do hotel encurtaram a distância entre os dois e, como fogo em palha seca, não demorou a incendiar. Lena ainda tinha uma agenda a cumprir até retornar ao Brasil. Como uma Sherazade, contava sobre coisas, usos e costumes da sua terra natal, só que não tinha mil e uma noites com Omar, e eles sabiam disso.
A companhia de dança seguiu seu rumo e a tecnologia cuidou de mantê-los conectados apesar da distância.
Para a conversa com a família, ele tinha um álibi – o compromisso com a felicidade. Esse era o apelo do patriarca daquele clã, seu avô, que, antes de partir, deixara a mensagem bem gravada no seio de toda uma geração: “Num país em que a liberdade é um mito, precisamos ter imaginação e lutar pelos nossos sonhos de felicidade!” - dizia o velho com os olhos distantes, deixando transparecer que se pudesse voltar atrás, seria fiel a cada um dos seus desejos não realizados.
Apesar do cinza habitual, naquele sábado um laranja vibrante teimava em tingir o céu. Era um bom presságio para a partida do primogênito. Os deuses abençoaram e a família resignada aceitou a decisão.
Desde então, escaparam pelos vãos do tempo uns dez anos. No Recife antigo, Omar faz história com os temperos que refinam o paladar dos “chefs” mais badalados da gastronomia local e conta com a sabedoria do pai.
Hoje, Lena, sua mulher, se apresenta para uma multidão no marco zero da cidade. Uma coreografia especial pelo aniversário da capital, batizada de “papo-de-anjo” que promete adoçar a noite festiva dos pernambucanos.
No olhar do marido, aquela admiração da primeira vista o visita com a mesma intensidade e, apesar da saudade, sentimento que nomeia a falta dos afetos distantes, ele cantarola contente a sua versão para uma das relíquias de Chico Buarque: “... dancei com uma dona feliz que tem um tufão nos quadris. Bye, Bye, Kabul!”.
(Adriana Bispo)

quarta-feira, 31 de março de 2010

AGONIA

(Conto com as palavras: jibóia, Afeganistão, penumbra, papo de anjo, contra-senso, álibi, sacrilégio, destilar)

Estava ele recostado em sua cadeira, lendo o livro em voz alta, tão compenetrado que não parava nem para tomar fôlego.
Contava a história sobre o Afeganistão, um país tão distante que nem sei onde fica.
Eu ouvia desatenciosamente suas histórias.
Ele contava da guerra civil gerada naquele país, das intervenções estrangeiras como a invasão soviética, e como os talibãs se apropriaram de sua maior parte.
Que o país sofre com a seca e que o fornecimento de água doce era limitado.
Falou que o Afeganistão é um país montanhoso, que tem clima continental, com verões quentes e invernos frios. Que é frequentemente abalado por sismos.
Eu aqui ouvindo e observando seus gestos, o farfalhar daquele livro parecendo me conduzir a um espaço sem fim, a penumbra daquela sala, sua voz rouca e sufocada confabulando com a minha mente, feito uma jibóia a digerir o animal alvo do ataque. Meu corpo se enrolando à volta desse enredo, gotejando, tal qual o vinho a destilar.
Na minha imaginação, eu apertava essa angustia como uma presa, para esta libertar o ar dos seus pulmões. Sufocá-la assim até sua morte, exatamente como fazem essas serpentes.
Eu não estava suportando aquela situação, não queria ouvir aquela historia.
Nem observá-lo, com seus gestos tão robotizados.
Estou aqui atônito, frente a frente com este homem que conheço tão bem.
Que me fazia carinhos e satisfazia os meus desejos de criança.
Lembro dele me contando histórias tão lindas que eu viajava com os meus heróis.
Saí procurando em minha memória os momentos bons que havia passado ao seu lado e ao lado de minha família.
As festas e reuniões aconteciam em sua casa, que tinha um quintal muito grande. Eu e meus primos estávamos sempre aprontando algumas travessuras.
Muitas vezes, os safados de meus primos aprontavam e colocavam a culpa em mim. Eu então precisava ter um álibi e como uma das minhas primas tinha certa queda pela minha pessoa, eu a convencia a confirmar minha tese de que o culpado não era eu.
Minha avó, minha mãe e minhas tias ficavam na cozinha fazendo comidas deliciosas e colocavam todas aquelas guloseimas na mesa de jantar. Bolo, suco, frutas, café, chá, leite, pão, carne assada.
Hum! Só de pensar me enche a boca de água. Tinha também um doce que era feito com gemas de ovos, que depois de assado era mergulhado na calda de açúcar. Esse doce era chamado de papo de anjo. Ah! Como aquilo era bom, parecia que em minha volta havia uma legião de anjos cantando.
Agora me encontro com ele aqui dentro deste quarto, tão frio, tão sem vida, parecendo um quadro de natureza morta, onde ele fica contando a guerra e os costumes de um país tão distante, que nem sei se está entendendo o que lê.
Como é duro, como é pesado ver o meu avô vegetando. Foi um homem tão culto, um advogado brilhante. Para mim é um contra senso vê-lo nesta condição de letargia, fere muito meu coração. Ás vezes me revolta a situação, cometo até um sacrilégio e maldigo tudo quanto é sagrado, digo que não creio em nenhuma religião.
Parece que meu avô entendeu o meu sofrimento porque me chamou para junto dele, estendeu a sua mão e olhando fixo nos meus olhos, escancarou um sorriso maroto, como a dizer: Não tema, pois irei muito além do que você acredita.
Percebi então que era meu divagar que limitava seu viver.
(Vera Lucia de Araujo Rodrigues)

OS HOMENS SEM PÉS

(Conto com as palavras: jibóia, Afeganistão, penumbra, papo de anjo, contra-senso, álibi, sacrilégio, destilar)

Calixto pouco falava. Mais ouvia. Quando se envolvia em conversa, ia logo dizendo que não dava palpite na roda porque não era homem para variações. Com ele tinha de ser direto e reto. Não gostava de temas que envolvessem futebol e essas coisas do dia a dia das cidades. Homem do campo fora acostumado aos movimentos da natureza bruta, chuva no lombo e sol inclemente na cabeça, não havia tempestade nem tão pouco vento forte que o fizesse largar o trabalho.
Não fosse um estranho hábito, e até certo contra-senso com a postura que demonstrava em público, Calixto seria como a maioria dos seus companheiros de mesa e copo que, como ele, passado dos oitenta, retirado da vida laboral, alimentava esperanças de um dia ganhar na loteria e poder comprar amor, atenção e o respeito dos familiares para raros anseios e sonhos modestos.
Nada de muito extravagante, o costume que tomara conta de Calixto e, até certo ponto, criara um álibi para sair às noites de quinta, era o de contar histórias para crianças de um orfanato lá pelos lados da Vila Guarani. Os pequenos internos ficavam inquietos e excitados quando a noite de quinta-feira se aproximava. Naquele dia, chovesse canivete, lá estava Calixto pontualmente, às oito da noite, para conduzir as crianças dos quatro aos doze anos a uma viagem de sonho, fora dos limites estreitos dos muros do abrigo e, principalmente, dos cantos escuros do desamparo e da solidão.
Calixto não elaborava seus contos com antecedência. Ao contrário, criava parte do enredo no caminho para a reunião e lá, no meio da molecada, aos poucos, montava o cenário e os personagens que, por mágica, tomavam forma e ganhavam locais, nomes e os tipos que ambientariam a história da noite.
Aquela quinta não foi diferente. Caminho tomado, passo calmo, concentração ativa, e as imagens a pulular em sua mente como se saltassem de uma caixa mágica. Cores, cheiros, tamanhos, olhos, cabeças, com e sem cabelos, caras limpas, dormidas, acesas, alegres, tristes, pintadas, castelos, cavaleiros, dragões, serpentes jibóias enormes, e, por fim, o enredo. Este sim, criado por último, acolhia todo aquele caleidoscópio com paisagens e lugares que iam se juntando para formar um espetáculo igual aos montados por atores mambembes: chão limpo, palco levantado, lona estendida e a cortina, que, aos poucos, ao abrir e fechar dá a dinâmica das cenas e dos personagens.
Calixto caminhava na parte final do trajeto que o separava da creche. Exatos quatro últimos quarteirões, os mais escuros pela ausência sistemática da iluminação pública. No trecho ficava a maior praça do bairro. Toda em desnível para encanto dos que se deixam alumbrar pela mistura do real e do imaginário, e denso bosque com muitas árvores e arbustos. Ali conviviam paineiras, ipês, patas de vaca, amoreiras, embaúbas, pitangueiras e damas da noite, todas cercadas por canteiros circulares e passarelas estreitas. À noite, na penumbra, imaginava Calixto ser o local mágico apropriado para que os entes da natureza deixassem a vida interior e conviverem, à distância, com os humanos. Não com todos, somente com aqueles cuja sensibilidade é por eles percebida por meio de uma qualidade muito própria: a de estarem ainda próximos do ato criador original.
Estaria Calixto cometendo sacrilégio ao trabalhar com esta visão fantástica?
O transitar naquele espaço deu o mote para a conversa da noite. E não foi diferente. Metido na mistura mágica de pensamento e ação, Calixto sentiu que alguém o observava entre os arbustos. Parou, firmou os olhos e ficou com a impressão de ter visto dois meninos muito pequenos, tão clarinhos que refletiam a luz da lua. A impressão riscou sua mente como um relâmpago, tão bem construída, que um detalhe fixou em sua retina: as crianças não tinham pés! Isto mesmo, sem os pés! No mesmo instante passou por sua mente a questão: nasceram assim ou foram vítimas de algum evento sinistro? Pensou nos mutilados do Afeganistão, inocentes colhidos pelos efeitos dos atos de ódio e violência. Afastou a imagem ruim e passou a construir a trama de um conto feliz.
Aturdido com a visão ou quase visão, seguiu seu rumo. Espantado por um lado e feliz por outro, o tema da noite estava escolhido: A praça dos homens sem pés.
Reuniu as crianças como de costume e começou a lhes falar sobre o mundo fantástico dos sem-pés.
Transcorreu sobre o parentesco dos sem-pés com os duendes e gnomos; como se formavam as suas famílias, das atribuições de guardiões das raízes das árvores seculares, para delas extrair e destilar a seiva que os alimentava; do gosto pelo doce papo de anjo; do amor pela natureza e por tudo que o Criador colocou sobre a face da terra.
Disse também sobre a infância, juventude e velhice dos sem-pés, sua relação com os humanos e da fórmula mágica que eles inventaram para ficarem visíveis às crianças. Nesse ponto, já no fim da história, Calixto foi interpelado por Guto, menino vivo, agitado, que lhe perguntou: - De que era feita a fórmula mágica? Calixto parou, tomou fôlego, e repetiu, de pronto, que a fórmula da poção maravilhosa estava muito bem guardada no centro da terra e não fora revelada para ele porém, seu neto, Eduardo, que sonhara com os sem-pés, dissera que apenas um dos componentes da poção poderia ser revelado: uma farinha muito fina e comestível, o nome revelaria na próxima quinta.
Encerrado o conto da noite, um alvoroço total se instalou no ambiente. A meninada alegre e barulhenta pedia insistentemente para Calixto antecipar a continuação da história. Foi difícil, mas Calixto resistiu. Após as despedidas e a promessa de voltar, despediu-se e seguiu contente pensando na próxima quinta.
Ao passar novamente pela praça mágica ficou a refletir: como justificar para os seus pequenos ouvintes o fato de alguém andar sem os pés...?
(José Augusto Bertelli)

DEUS É JUSTO

(conto com as palavras: jibóia, Afeganistão, penumbra, papo de anjo, contra-senso, álibi, sacrilégio, destilar).

Que eu não cometa nenhum sacrilégio ao tentar fazer das palavras o itinerário da minha chegada do Afeganistão à fazenda de meu avô.
O dia estava morrento! Calor à beça. Poeira, quanta poeira
Durante todo o trajeto até a porteira, o pó teimava em pairar na paisagem. Isso pelos menos ajustou um colorido à parte na linha do horizonte, na hora do sol poente.
A família me esperava reunida. Tinham caprichado na recepção dessa ilustre figura que vinha de longe. Contavam-se sobre a mesa todos os meus gostos mais recônditos da gastronomia, a torta de limão, receita de minha avó, até os papos de anjo bem feitinhos, mergulhados na calda cheirosa de caramelo com canela. Hum que delícia!
Vinha pelo trajeto pensando nisso; que gostoso voltar, que saudade!
Quando Tião estacionou o carro que nos transportou do aeroporto até ali, parou sob o frescor das árvores, abri a carro e ao colocar um pé para fora, eis que tomei uma picada! A danada estava ali, na espreita de um pé. Foi o meu...
Corre corre geral.
Eu gritava de dor, e que dor.
Logo veio Tião a laçar em torniquete minha perna para estancar a passagem do sangue. Pauladas acabaram com a tal da jibóia. Nesse instante destilei através do que via um sabor de vingança.
Fui levada para dentro de casa, não podia me mover, não devia, se me mexesse, espalhava o veneno. Me deram uma cachaça. Tomei. Bebi mais um pouquinho...
Logo estava numa penumbra, entre a picada da cobra, o pó da estrada, papos de anjo, Afeganistão e uma gritaria confusa.
Todos os itens dentro de mim criavam um sentido estranho de realidade. O veneno me alterou.
Dormi algumas horas até que Dr. Augusto chegou. Enquanto isso a festa fora suspensa, Aguardando que tudo se alinhasse, aliviasse, para podermos finalmente nos abraçarmos calorosamente.
Quando sarei, decidi que não era contra senso, não era pecado jogar na alminha daquela cobra, fiz o jogo do bicho.
Não deu outra!
Deu cobra!
Ganhei!
(Anita Bueno de Araujo).

quinta-feira, 25 de março de 2010

LABORATÓRIO DO ESCRITOR - AULA DE 3 (20/03/10)

CRÔNICA VS CONTO

CRÔNICA - É um comentário sobre um acontecimento real, preferencialmente diário.
É o acontecimento diário sob a visão criativa do escritor.
Quando a crônica entra no terreno do imaginário, vira conto.
TODOS SOMOS CONTADORES DE HISTÓRIAS. A diferença é que nós vamos usar como instrumento a narrativa impressa, o registro inscrito.
Já falamos sobre as idéias, de onde surgem. Que elas pairam no ar, no cotidiano, nos jornais. Quanto mais antenados, maior o repertório e as possibilidades. Daí a importância de anotarmos as idéias.

E O QUE É O CONTO?
São pequenas histórias que relatam e narram uma história verídica ou lenda.
É uma narrativa imaginária que envolve fantasia.
Narrativa real é a que envolve biografias, ensaios, textos históricos, grandes reportagens.
O conto é, pois, uma ficção com unidade de tempo, espaço e ação. Conto possui= Uma ação /Um lugar /Um tempo /Um tom.
É uma narrativa pequena que vai direto ao assunto. O conto contém apenas um único drama, um só conflito. Esse drama único pode ser chamado de "célula dramática".
O conto é um relâmpago na vida dos personagens. Não importa muito seu passado, nem seu futuro.
O conto clássico tem princípio, meio e fim. Um conto robusto pode ter cerca de 100 linhas e no máximo 200 linhas.

MILTON HATOUM – É um escritor brasileiro contemporâneo premiado que começou a escrever romances. Seu primeiro livro de contos acaba de ser lançado.
Ele diz que o Conto é mais denso. Deve ser breve e denso. É como uma fotografia que extrapola da moldura. É um recorte, um fragmento da realidade.

TCHECOV, o grande escritor russo, ia mais além: “Ao escrever um conto, quase que suprima o começo e o fim e fique com o miolo”.

CADA CONTADOR TEM UM JEITO DE ESCREVER. Há os que ficam possuídos e há o artesão, que borda um texto, refaz. Cada um vai descobrir o seu caminho, mas o processo de escrita é doloroso sempre.
Há um caminho para começar a escrever: idéia, sinopse. Toda história implica em uma estrutura.

CONTISTAS:
Julio Cortazar;
Jorge Luiz Borges;
Clarice Lispector;
Machado de Assis;
Tchecov

quarta-feira, 24 de março de 2010

Sinal verde, atravessei o sol

Sinal verde, atravessei o sol.
Assim me fiz atriz.
Fui descobrindo paisagens que às vezes me deixava cansada; não desistia de encontrar o canto onde a calma estava.
Deixei tudo, contas, endereços, nomes, amores. Ah!os amores. Alguns vieram comigo, impossível largá-los, mesmo assim os guardei em vãos escondidos.
Saí sem destino, há muito desejava isso.
Em alguns momentos, a luz me cegou, me confundiu, me perdi ,me achei.
Caleidoscópio de sensações e emoções fizeram desenhos em minha alma.
Delirei,adorei,quase morri.
Sempre descobri novos olhares.
Mergulhei fundo em cada personagem; esses me fizeram velha, menina, homem, mulher.
Sempre fui secundária para meus habitantes. E tive que me despir para dormir, descansar, quando as luzes do palco já tinham sido apagadas.
Atuar muitas vezes era inventar e dizer a minha verdade sem me perder no personagem.
Às vezes começava, nem sempre pelo começo.
Cada fala, cada tom, cada gesto se contradiziam em mim, pois buscava uma verdade que nem sempre foi a minha; precisei viver o outro sem sê-lo.
Era como se eu entrasse na sala dos segredos de alguém e fosse abrindo caixinhas que me diziam coisas.
Com o tempo gostei do mergulho na alma do outro.
Tornou-se vocação trazer coisas das caixinhas e exprimi-las.
Meu corpo tornou-se revolver.
Cada um que me habitou eu amei, eu odiei, me fiz assim humana.
(Anita Bueno)

Sinal verde atravessei pra lá do sol

Sinal verde atravessei pra lá do sol pensando que o dia inaugurou com uma sucessão de sinais amarelos pedindo a minha atenção...
A começar pela minha distração esquecendo aqueles documentos tão importantes. Onde ando com a cabeça? Isso é que dá fazer tudo correndo. Culpa da modernidade que exige que façamos mil coisas ao mesmo tempo. E não adianta querer espichar o tempo, ele tem presença determinante. Recuo por alguns instantes e decido: voltarei para pegar os documentos esquecidos.
Volto correndo ao prédio onde moro, o portão automático nem sempre funciona e tenho que chamar Alberto, o porteiro. O nervosismo e a pressa que tomam conta de mim fazem dos minutos eternidade. A calma de Alberto me irrita. Estava a ponto de chutar o portão. Foi quando parei. O que eu estava fazendo comigo? Já não me conhecia mais. Aquela pessoa irritada e nervosa não era eu. Onde eu estava na verdade?
Acho que estou conseguindo pelo menos parar e pensar antes de tomar atitude mais agressiva. Porque essa postura não condiz com a minha pessoa. Então parei, respirei, olhei para o sol daquela manhã e me lavei no suor do corpo. Percebi que num único dia o meu semáforo interno oscilou do verde ao amarelo várias vezes, estacionando no vermelho e sinalizando a minha aceleração. Me sinto como uma avenida movimentada na “hora do rush” – paciência curta, tumultuada e se não der um freio entro em rota de colisão...
A noite enfim chegou e a lua serena adornando o céu me lembra que é hora de desacelerar e dar sinal verde para o descanso. Até amanhã!
(Adriana Bispo de Araujo)

Sinal verde atravessei pra lá do sol

Sinal verde atravessei pra lá do sol festejando o fim de semana que se aproxima e todas as possibilidades de conectar com os prazeres que adoçam o meu paladar para a vida.
A dupla sábado e domingo é muito bem-vinda para a maioria de nós. Aguardada com entusiasmo. Sinônimo de relax, da mescla do compromisso com o descompromisso, de cardápio diferenciado, de filme novo em cartaz, de encontro com os afetos e de recarga nas nossas baterias. Se há problemas a resolver, estamos de folga e a cabeça arejada parece funcionar melhor.
De minha parte, gosto de esquecer o relógio, aliás, há muito o libertei do meu pulso e sigo um tempo mais interno. O maior luxo do mundo contemporâneo é o tempo livre! Ter liberdade de dispor desse tempo sem pressa e sem pressão é a cara do fim de semana.
Acordar quando o corpo pede, sem despertador, livre de atropelos. O espreguiçar é o primeiro exercício do dia. Muito e demoradamente. Sentindo cada parte do corpo bem viva e pulsando.
Depois se conjuga o verbo agradecer. Por mais um dia, pela saúde, pela casa aconchegante, pelo par que escolhemos para dividir a caminhada, e claro, os lençóis. Agradecer sobretudo pela oportunidade de estarmos neste mundo vivendo, aprendendo, evoluindo. Uns chamam esse ritual de meditação, outros de oração. Para mim é o momento de conexão com Deus e com o meu dedicado anjo da guarda.
Café no capricho, banho digno de SPA, música alto astral, roupas mais coloridas, sapatos bem confortáveis e lá vou eu para a rua, sem bússola ou com ela bem sintonizada com os desejos. Os sentidos ficam mais sensíveis à beleza que me rodeia, que está ali todos os dias mas a gente não para pra olhar. Caminho convencida de que é na simplicidade das coisas que mora o prazer.
Aprendo que, na verdade, é bem possível transformar os finais de semana em ‘mini férias’ e transportar para os dias cotidianos uma dose desse espírito leve que nos visita aos sábados, domingos e feriados.
(Adriana Bispo de Araujo)

Exercício coletivo - Palavra "areia"

Ela arruma o cabelo, calça os sapatos e sai ao encontro das amigas. O combinado era que se encontrariam na frente do shopping para então seguirem rumo ao Litoral Norte. Programinha básico: balada seguida de praia. Não queria mais nada da vida. Não via a hora de pisar na areia e ver o sol nascer depois de dançar a noite toda.
Grupo formado, carro revisado, tanque cheio e lá foram para a Rio-Santos.Dia calmo ,sol e brisa suave.O dia prometia.Sem aviso,Laura começa a soluçar e aos prantos vai logo avisando que o fim de semana para ela já estragou.Não tinha jeito.
O fim de seu relacionamento com Paulo, namorado de dois anos ou mais, tinha lhe tirado o chão. Pensou que rever as amigas seria uma boa idéia, mas de nada estavam adiantando as risadas e brincadeiras que antes lhe eram tão prazerosas.
Trancar-se em casa também não era solução. Talvez sua mãe estivesse mesmo certa, o melhor seria viver esse tal de luto. Chorar tudo que tiver que chorar, mas também sacudir a tristeza e distrair-se com outros cenários. E nada melhor como novos personagens para recriar a história.
Desceram do carro na 1ª parada e entraram na lanchonete. Já estavam pagando suas contas quando um rapaz maltrapilho se aproximou.
Laura subitamente fixou seu olhar naquele rapaz que, embora mal vestido, tinha um semblante que a deixou paralisada. Por algum tempo Paulo saiu de sua mente.
Tudo que importava agora era continuar a olhar aquele rosto e a apreensão com sua chegada era, a cada segundo, mais amedrontadora.Afunda em si mesma quando a linda voz diz: “Moça,o Ford vermelho estacionado no fundo da lanchonete é seu?”
Laura balança a cabeça sem nada dizer, mas a expressão em seu rosto entregava que sentia muito medo do que viria a seguir: “Então, moça, o pessoal do outro carro esvaziou dois pneus... Pediram para entregar este bilhete”.
Sem acreditar no que lia, a única coisa que lhe vinha à mente era a maldita frase que dizia que nada está tão ruim que não possa piorar.Devia ser praga do Paulo. Ela só queria curtir com as amigas, esquecer seus problemas.
O bilhete dizia: “Na próxima vez que for roubar a vaga de alguém, pense duas vezes,sua vaca!”
De fato, quando chegaram à lanchonete só havia uma vaga no estacionamento e elas haviam notado um outro carro esperando, mas acharam que seria divertido transgredir um pouco.
Enfim, sem balada, sem praia, as meninas tiveram que passar a madrugada esperando o guincho e contando com a esperança de um dia poderem rir de tudo isto. Laura havia mesmo dito que o fim de semana já tinha estragado.

Sinal verde, atravessei pra lá do sol

Os versos da canção ouvida no rádio de algum vizinho me remetem a um tempo, a uma lembrança de quando cheguei àquela casa.Hoje estou me despedindo dela .Passei bons momentos aqui. Casei-me, criei meus filhos e ainda posso ouvir seus risos e gritos por estes corredores.
A música continua ao longe mas não estou mais presa aos seus versos. É forte a impressão que me causam aqueles cômodos agora vazios, aquelas paredes amigas que ainda conservam as marcas que eu mesma fiz ao colocar um quadro e depois um espelho. Vou deslizando minhas mãos pela parede fria. Quero guardar na memória esta sensação. A casa da minha infância, a casa de meus pais e depois minha.
Quero poder agradecer pois ela, ao longo do anos, deixou de ser apenas uma construção boa e sólida e passou a fazer parte da família, o palco da nossa história. Despeço-me dela, de seu chão de madeira corrida, de suas janelas brancas e altas e daquele quintal. Vou-me embora, vou pra longe, vou ganhar mundo, como dizia meu pai. Adeus minha casa querida, meu lar, vou agora pra lá do sol.
(Cláudia Del Pintor)

Que a Bossa seja nova

Sinal verde. Atravessei pra lá do sol... “Saudade FM! Você ouviu Pernas, de Sérgio Ricardo, com o oferecimento do fixador de dentaduras...”.
Não sou muito fã de Bossa Nova e tão pouco sinto saudade de uma época que não vivi, mas tentando sintonizar o rádio do carro, Bossa foi o que restou dadas as outras opções: “No rebolation,tion,tion...” “Quase de manhã e ainda não dormi,fiquei bebendo até cair...” “Gaga uh lá lá...”
Fico pensando o que será que os compositores na época tomavam para escreverem sobre um par de pernas que entra num conversível, o patinho qüem, qüem ou o barquinho que vai e vem.
Deve ser normal que nosso gosto musical se altere com o passar dos anos e tão normal quanto a mudança de gosto é o choque cultural entre gerações quando o assunto é música.
Se tivesse um filho adolescente hoje, não saberia o que é pior: um filho “Emo” que se veste de forma andrógena ou uma filha rebolando até o chão ao som de uma música que enaltece a promiscuidade sem fim, a exemplo da professora que foi filmada dançando o tal de “enfiadinho”... Argh!
Pode ser que daqui a 15 anos, quando minha filha for de fato adolescente ,as coisas não estejam tão ruins.
No final das contas, fico na esperança de que a Bossa volte a ser moda e minha filha se dê por contente em balançar ao som ingênuo do barquinho que vai enquanto a tardinha cai.
(Daniela Marino)

terça-feira, 23 de março de 2010

Busca

Sinal verde. Atravessei pra lá do sol.
Procurando loucamente fugir daquela luz que queimava meu rosto.
Sentindo a brisa forte que vinha até mim enquanto dirigia minha moto.
Gosto mesmo é de correr, passar adiante, romper o silêncio, ganho o mundo rápido.
Nem observo o mundo a minha volta, entro no meu mundo interior e acelero para desafiar todo o mal estar que me consome.
São diferentes rotas de fuga e até o meu ofício combina com o meu momento atual. Correr, voar, acelerar – verbos que conjugo no tempo da pressa e da pressão.
Ser piloto de prova foi uma forma de ganhar dinheiro fazendo o que eu amo.
Quem diria que um motoboy chegaria tão longe?
Não desisto, pois conheço tanta gente que chegou “lá”. Fiz tantas viagens interiores, mas é a vida prática, pragmática está indicando qual a direção seguir.
Logo vou fechar um contrato que vai me garantir uma boa remuneração por pelo menos dois anos.
Mas quer saber? Mesmo que não fosse assim eu continuaria a correr. Claro que dinheiro é bem vindo, mas pilotar é minha vida. Continuarei a buscar essa linha de chegada invisível que nem ao menos sei onde está. Continuarei a buscar aquilo que ainda não vejo com meus olhos, só sinto em minha alma. Pois sei que existe um lugar além do tempo onde mora o que todos sonhamos encontrar.
(Daniel Rodrigues Salgado)

Metamorfose

Sinal verde. Atravessei pra lá do sol.
Deixei pra trás mais um dia caminhando nesse calçadão com a maresia que toma todo o ar a minha volta.
Sobre minha cabeça uma metamorfose acontece enquanto o sol baixa timidamente a minhas costas levando consigo o calor de seus raios dando lugar à lua que subia imponente mais uma vez.
Ao meu redor as luzes artificiais começam a iluminar a cidade como uma miríade de estrelas no manto escuro do céu.
Lembrei-me dos antigos gregos que diziam que a deusa Nix atravessava os céus em uma carruagem conduzida por cavalos voadores e arrastando atrás de si presa em seu longo manto a noite que tomava conta dia. Peguei-me tentando imaginar a cena.
Que belo fim de tarde aquele.
Respirei fundo e continuei minha caminhada.
Passei lentamente por pessoas que de tão atordoadas em seus problemas não conseguiam ver a magnífica mudança sobre nós. Eu achava engraçado como pessoas passavam por lugares como aquele, sem ao menos notar o que há à sua volta.
É como se o ser humano se fechasse nele mesmo, e por mais que queira perceber, não consegue se desligar dos problemas do seu dia a dia e não notam o que está ao redor.
Enquanto seguia fui reparando nas pessoas. Do meu lado um casal discutia pelo atraso da mulher em se arrumar e que chegariam atrasados a algum encontro. Mais a frente um carro estacionado estava com as portas abertas e uma musica muito alta incomodava a quem passava enquanto jovens debatiam fervorosamente para onde eles iriam naquela noite. Precisavam exibir o novo som do carro.
Num ponto de ônibus um trabalhador reclamava sozinho do trabalho e do atraso do ônibus, pois ele estava perdendo o jogo na TV. “Deus, que problema” pensei.
Ninguém notara a metamorfose daquela tarde.
O mais engraçado é que somos iguais, estamos sempre mudando. Mudamos quando somos criança depois a difícil metamorfose da adolescência, mudamos quando somos adultos, casamos e quando envelhecemos voltamos a ser crianças. Mas se mal notamos nossas mudanças quem dirá a do mundo a nossa volta.
Balancei a cabeça afastando os pensamentos e voltei a andar.
Parei então um pouco mais a frente e voltei a mirar o céu. O sol terminava de se esconder atrás dos morros, e pouco tempo depois a lua já alta criava um caminho prateado nas escuras águas do mar.
Mais um ciclo daquele dia terminou. O dia deu lugar a noite. A metamorfose estava completa.
(Daniel Rodrigues Salgado)

segunda-feira, 22 de março de 2010

Sinal verde: atravessei prá lá do sol

Não me preocupei se iria morrer ou me perder para sempre. Fui em frente.
Fechei os olhos e me lancei naquela visão...
São tantos os sinais: multicoloridos, diferentes fontes e formatos. A dimensão do sonho mais uma vez me toma de assalto. A paixão faz isso com a gente.
Vira-se adolescente, as cores ficam intensas, carregadas de tons brilhantes. E assim, no afã de manter vivo esse momento único, a gente acaba se perdendo.
Um simples atravessar de um semáforo com a luz do sol de frente, como um flash, acaba nos tornando românticos. Parecemos bobos!
E não tem o que fazer, somos surpreendidos, não há planejamento nas questões do coração, seus caminhos são desconhecidos pela nossa razão dialética, empírica, patética, e mais sei lá o quê...!
Aquele dia se iniciara de maneira inusitada e nada parecia fazer sentido.
Só restava esperar como aquele dia único iria terminar.
Sossega coração! Dá um tempo!Descansa dos amores impossíveis! Bate, bate forte, fica aí no seu compasso, só bate, espera um novo dia, o sol de frente e outro sinal verde qualquer.

José Augusto Bertelli

sexta-feira, 19 de março de 2010

Maré

Todo dia o mesmo caminho: Canal 4 até a praia. No trajeto, o primeiro café da Santista, diferente dos demais, coado no orvalho, como dizem os apreciadores. Sempre pontual e tranquila, segue rumo às lanchas para o Guarujá.
Aquela terça-feira não é diferente, exceto pela ausência das gaivotas nos contrafortes da avenida. Estavam mais distantes, ciscando rente à maré, entre mariscos e pequenos caranguejos, a refeição do dia.
Caminhava como quem conhecia cada calçada, cada vão e viela. Poderia andar de olhos fechados e saberia exatamente as cores do dia.
Mas essa terça guardava uma surpresa a modificar não só o ritmo da sua caminhada e as cores da sua paisagem. Alterava subitamente o pulsar do seu coração. Lá estava ela, caminhando ao seu encontro, tantos anos depois.
Não havia necessidade de puxar pela memória. Seu rosto tinha povoado seus sonhos por toda uma vida. Seu corpo contava, nas linhas que a vida imprimiu, a trajetória de mãe de tantos filhos, nove entre os vivos e os mortos, mas isso só lhe dava mais graça.
O espaço que separava suas direções tornou-se eterno para ela. Segundos decisivos. Seria reconhecida? Gostaria de ter sua terça alterada? O tempo parece deslizar enquanto ela se aproxima.
Coração a mil e simplesmente não sabe o que fazer. E se não se lembrar?
A aproximação inesperada, excitante e dolorida, transforma aquela manhã num mar de emoções tão fortes que a faz antever a mãe que o tempo levara tão longe. Aguardou o encontro, estática, rente ao meio fio, e, de braços abertos, se preparou para segurar sua Santinha. Fechou os olhos, sentiu a brisa e o cheiro da manhã e assim ficou por muito tempo. Quando os abriu, viu que o encontro ficara para uma outra vez, quem sabe numa outra terça-feira. A barca apitou, o motor rugiu e a esperança, como sempre, se renovou.

José Augusto Bertelli

Da minha varanda vejo...

... entre árvores e telhados, o mar , imenso, azul-verde, refletindo o dia . A espuma branca tingindo a areia, explodindo no rochedos ao fundo, e brincando nas pernas das meninas. Vestido assim, com tanto espanto, o mar parece um convidado que chegou na festa errada, nada que ele apresenta combina com o resto da paisagem, tão modificada pelo homem.A avenida atulhada de carros que seguem nervosos, confusos, pretos, pratas, cinzas. As calçadas estreitas e tímidas, esburacadas e sujas. As pessoas rápidas procurando o depois.
No alvoroço do dia que segue, volto ao meu trabalho, converso com meu filho, atendo o telefone, rabisco compromissos . Mas, de vez em quando, volto à varanda e dou mais uma olhadinha, só para ver se ele ainda está lá, o velho mar companheiro, tão calmo e sereno, outras vezes enfurecido – como se parece comigo....
Volto à varanda para me certificar de que ele não foi embora, que aguentou firme a invasão dos turistas, das calçadas, dos prédios, e gosto de pensar que ele só continua ali porque tem a mim para reconhecê-lo e saudá-lo.Garotas desfilam seus biquinis, rapazes jogam futebol, mães passeiam com seus bebês , um aviâozinho teco -teco circula a propaganda da mais nova cerveja. O mar a todos perdoa e quando o sol desce e está quase sumindo em suas águas, é como se ele desse uma piscadinha para esse admirador e dissesse : -
Tudo bem amigo , a gente se vê amanhã.

Cláudia Nogueira Del Pintor

quinta-feira, 18 de março de 2010

LABORATÓRIO DO ESCRITOR - AULA 2 (13/03/10)

1) LEITURA DAS CRONICAS APRESENTADAS –Da minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. (Rubem Braga)
2) CRONICA- O QUE É
Atualmente, é um gênero literário que explora qualquer assunto, principalmente os temas do cotidiano.
A crônica é um gênero híbrido que oscila entre a literatura e o jornalismo, resultado da visão pessoal, particular, subjetiva do cronista ante um fato qualquer, colhido no noticiário do jornal ou no cotidiano.
Geralmente escrita para ser publicada em jornais e revistas, a crônica se caracteriza pelo tom humorístico ou crítico.
A crônica é o relato de um flash, de um breve momento do cotidiano de uma ou mais personagens.
Uma das finalidades da crônica é justamente apresentar o fato, nu, seco e rápido, mas não concluí-lo.
Na crônica, geralmente não há desfecho, esse fica para o leitor imaginar e, depois, tirar suas conclusões.
A crônica não tem resolução, não tem moral, é aberta para que cada leitor crie o final que melhor desejar. O cronista, no fundo, deseja que seu leitor seja um co-autor.
Na crônica existe agilidade e simplicidade; faz uso de recursos orais (como os diálogos freqüentes), e de coloquialismos, que a tornaram mais próxima, e, de certa forma, melhor compreensível.
Comentário sobre um acontecimento real, preferencialmente diário. É o acontecimento diário sob a visão criativa do escritor.
É uma narrativa curta que geralmente tem como ponto de partida um fato real comentado pelo autor, muitas vezes de maneira lírica ou bem humorada.
É uma produção curta, apressada, redigida numa linguagem descompromissada, coloquial, muito próxima do leitor. Quase sempre explora a humor; mas às vezes diz coisas sérias por meio de uma aparente conversa fiada. Noutras, despretensiosamente faz poesia da coisa mais banal e insignificante.
Nas últimas décadas, no Brasil, muitos escritores notabilizaram-se por suas crônicas: Rubem Braga, Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo, entre outros
Normalmente destina-se à publicação em jornal ou revista mas se diferencia da notícia pq não é feita por um jornalista e sim por um escritor.
Não é mera transcrição da realidade, mas sim uma visão recriada dessa realidade por parte da capacidade lírica e ficcional do autor
O cronista é essencialmente um observador, um espectador que narra literariamente a visão da sociedade em que vive, através dos fatos do dia a dia.
Seus personagens podem ser reais ou imaginários.
Normalmente, por se basear em fatos do cotidiano, ela tende a se desatualizar com o passar do tempo. Nem por isso deixa de perder seu sabor literário quando agrupamos um conjunto delas em um livro.
A linguagem da crônica é descompromissada das construções rebuscadas, da sintaxe rica, dos adjetivos em excesso, e de tudo aquilo que a torna distante da vida real, ajustando-se desta forma, ao lirismo do nosso dia-a-dia.
LITERATURA DE JORNAL (O QUE É A CRÔNICA) Artur da Távola
É o samba da literatura. É ao mesmo tempo, a poesia, o ensaio, a crítica, o registro histórico, o factual, o apontamento, a filosofia, o flagrante, o miniconto, o retrato, o testemunho, a opinião, o depoimento, a análise, a interpretação, o humor. Tudo isso ela contém, a polivalente.
Direta a simples como um samba. Profunda como a sinfonia.
CRÔNICA E OVO [Jornal O Dia, 27 de junho de 2001] Luis Fernando Veríssimo
"A discussão sobre o que é, exatamente, crônica, é quase tão antiga quanto aquela sobre a genealogia da galinha. Se um texto é crônica, conto ou outra coisa interessa aos estudiosos de literatura, assim como se o que nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha, interessa aos zoólogos, geneticistas, historiadores e (suponho) o galo, mas não deve preocupar nem o produtor nem o consumidor. Nem a mim nem a você.
SOBRE A CRÔNICA - Ivan Angelo
Fernando Sabino escreveu que "crônica é tudo que o autor chama de crônica".
A dificuldade é que a crônica não é um formato, como o soneto, e muitos duvidam que seja um gênero literário, como o conto.
Há crônicas que são dissertações, como em Machado de Assis; outras são poemas em prosa, como em Paulo Mendes Campos; outras são pequenos contos, como em Nelson Rodrigues; ou casos, como os de Fernando Sabino; outras são evocações, como em Drummond e Rubem Braga; ou memórias e reflexões, como em tantos.
Elementos que não funcionam na crônica: grandiloqüência, sectarismo, enrolação, arrogância, prolixidade. Elementos que funcionam: humor, intimidade, lirismo, surpresa, estilo, elegância, solidariedade.
Rubem Braga respondeu assim a um jornalista que lhe havia perguntado o que é crônica: Se não é aguda, é crônica.
3) LEITURA DA CRONICA DO RUBEM BRAGA HOMEM NO MAR

LABORATÓRIO DO ESCRITOR - AULA 1 (06/03/10)

1) APRESENTAÇÃO ELIANA PACE

2) APRESENTAÇÃO DOS ALUNOS: O QUE PRETENDEM?

3) O QUE PRETENDEMOS COM NOSSO LABORATÓRIO?

Dizem que ninguém ensina o ofício de escritor. Mas todos nós sabemos como é importante o treinamento para toda e qualquer atividade. Queremos demonstrar que escrever pode não ser um dom, mas um processo, uma técnica. Vamos mostrar que, no mundo da criação, é possível brincar com as palavras, inventar, experimentar, transgredir.Vamos ver que o ato de escrever é sempre uma busca de saber. Fernando Sabino dizia: Não escrevo porque sei, escrevo para saber.
COMO TRABALHAREMOS?
Vamos desbloquear o medo de escrever, incrementar um interesse especial pela literatura, por questões da gramática e outros aspectos formais da escrita.
Faremos de nosso trabalho um campo de treinamento de palavras e veremos como se dá o processo de criação de uma obra literária atraente. Vamos discernir gêneros literários - crônica, conto, novela, romance, biografia – e orientar a produção de trabalhos dentro dessas características.
Pretendemos incrementar o interesse pela construção de textos literários explorando suas possibilidades criativas, analisando objetividade, clareza, coesão e coerência de um texto literário.
Faremos um trabalho em conjunto para aguçar o espírito crítico e estimular a troca de experiências por meio da observação de técnicas de construção de terceiros.
As aulas serão eminentemente práticas e constarão de exercícios de sensibilização individuais e em grupo.
Realizaremos atividades individuais de produção escrita de contos e crônicas, sempre a partir de temas determinados e orientações técnicas dadas.
Os trabalhos produzidos serão lidos em voz alta e analisados e debatidos em grupo. Receberão críticas e sugestões do orientador.
Os melhores trabalhos serão postados em um blog e ficarão à disposição dos participantes.
5) DICAS PARA ESCREVER MELHOR
É na vida que está a maior parte do material literário. As histórias estão bem próximas. Use a memória sem medo.
O que oferece o maior aprendizado para o escritor iniciante é a própria vida. Vá fundo e dê vazão às suas emoções pessoais.
Um escritor deve conhecer bem o seu ofício. Estude muito.
Carregue sempre caneta e papel no bolso - ou agenda eletrônica: anote tudo o que pensa e quer.
Leia muito, sem preconceitos: os clássicos e os contemporâneos, os brasileiros e os estrangeiros. Não deixe de ler o que você realmente gosta, na hora e no ritmo que quiser. E sempre guiado pelo prazer - quando a leitura parecer pura obrigação, esqueça.
Escreva regularmente e deixe os textos descansando. Volte a eles de tempos em tempos e os reescreva.
Não acredite no mito de que quanto mais louco você for e mais sofrimento tiver, melhor será sua literatura. Um escritor mediano com a cabeça no lugar tem mais chances do que um maluco.
Seu estilo é seu maior patrimônio. Ouça sua voz e seja fiel a ela. Não imite os escritores que você ama (nem os que você odeia).
Se você transita entre muitas linguagens (romance, conto, poesia, teatro, etc.), cuidado. No começo da carreira, é mais prudente escolher um caminho e aprofundar-se nele do que ficar pulando de galho em galho. Deixe a diversificação pra mais tarde.
A função da boa literatura não é entreter e deleitar, mas inquietar e provocar o leitor.
Oficinas literárias são boas experiências, mas é preciso saber tirar o melhor delas.
Em suas leituras, preste atenção a todo tipo de recurso narrativo que os outros escritores usam. Veja como mexem com estrutura, trama ou ausência de trama, construção ou não de personagens, ponto de vista narrativo, etc. ,
É útil saber o que os outros escritores pensam sobre seu ofício. Descubra o que eles dizem a respeito em entrevistas e depoimentos. Se possível, converse com muitos deles, mesmo que tenha de vencer uma natural tendência dos literatos para a introversão e o isolamento.
6) GÊNEROS LITERÁRIOS – CRÔNICA
- Trata-se, na verdade, de uma convenção, pq não existem mais fronteiras.
CRÔNICA = comentário sobre um acontecimento real, preferencialmente diário.
É o acontecimento diário sob a visão criativa do escritor. Não é mera transcrição da realidade, mas sim uma visão recriada dessa realidade por parte da capacidade lírica e ficcional do autor
Crônica normalmente destina-se à publicação em jornal ou revista mas se diferencia da notícia pq não é feita por um jornalista e sim por um escritor.
O cronista é essencialmente um observador, um espectador que narra literariamente a visão da sociedade em que vive, através dos fatos do dia a dia.
Seus personagens podem ser reais ou imaginários.
Normalmente, por se basear em fatos do cotidiano, ela tende a se desatualizar com o passar do tempo. Nem por isso deixa de perder seu sabor literário quando agrupamos um conjunto delas em um livro.
Pode receber um tratamento literário. Quando a crônica entra no terreno do imaginário, vira conto.
8) EXERCÍCIO COLETIVO: CRONICA SOBRE PALAVRAS - CONCHAS, MAR, AREIA, MARÉ, ESTRELA DO MAR, POLVO, IEMANJÁ, BARCO A VELA
9) LIÇÃO DE CASA – CRONICA A PARTIR DESTA IDÉIA
Da minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar.(Rubem Braga)