segunda-feira, 9 de agosto de 2010

LABORATÓRIO DO ESCRITOR - AULA 1 (07.08.2010)

O QUE PRETENDEMOS COM NOSSO LABORATÓRIO?

·Demonstrar que escrever pode não ser um dom, mas um processo, uma técnica.
·Mostrar que, no mundo da criação, é possível brincar com as palavras, inventar, experimentar, transgredir.
·Verificar que o ato de escrever é sempre uma busca de saber. Fernando Sabino dizia: Não escrevo porque sei, escrevo para saber.

COMO TRABALHAREMOS?

·Desbloqueando o medo de escrever, incrementando um interesse especial pela literatura, por questões da gramática e outros aspectos formais da escrita.
·Fazendo de nosso trabalho um campo de treinamento de palavras e vendo como se dá o processo de criação de uma obra literária atraente.
·Discernindo gêneros literários - crônica, conto, novela, romance, biografia – e orientar a produção de trabalhos dentro dessas características.
·Incrementando o interesse pela construção de textos literários, explorando suas possibilidades criativas, analisando objetividade, clareza, coesão e coerência de um texto literário.
·Em conjunto para aguçar o espírito crítico e estimular a troca de experiências por meio da observação de técnicas de construção de terceiros.

OBSERVAÇÕES

As aulas serão eminentemente práticas e constarão de exercícios de sensibilização individuais e em grupo. Teremos atividades individuais de produção escrita de contos e crônicas, sempre a partir de temas determinados e orientações técnicas dadas. Os trabalhos produzidos serão lidos em voz alta, analisados e debatidos em grupo e receberão críticas e sugestões do orientador. Os melhores trabalhos serão postados neste nosso blog e ficarão à disposição dos participantes também para eventuais comentários.

O QUE É O CONTO?

São pequenas histórias que relatam e narram uma história verídica ou lenda.
·É uma narrativa imaginária que envolve fantasia - narrativa real é a que envolve biografias, ensaios, textos históricos, grandes reportagens.
·O conto é, pois, uma ficção com unidade de tempo, espaço e ação.
·Conto possui= Uma ação /Um lugar /Um tempo /Um tom.
·É uma narrativa pequena que vai direto ao assunto. O conto contém apenas um único drama, um só conflito. Esse drama único pode ser chamado de "célula dramática".
·O conto é um relâmpago na vida dos personagens. Não importa muito seu passado, nem seu futuro.
·O conto clássico tem princípio, meio e fim. Um conto robusto pode ter cerca de 100 linhas e no máximo 200 linhas.

·MILTON HATOUM – É um escritor brasileiro contemporâneo premiado que começou a escrever romances. Seu primeiro livro de contos foi lançado em 2009. Ele diz que o Conto é mais denso. Deve ser breve e denso. É como uma fotografia que extrapola da moldura. É um recorte, um fragmento da realidade.
·TCHECOV, o grande escritor russo, ia mais além: ao escrever um conto, quase que suprima o começo e o fim e fique com o miolo.

·CADA CONTADOR TEM UM JEITO DE ESCREVER. Há os que ficam possuídos e há o artesão, que borda um texto, refaz. Cada um vai descobrir o seu caminho, mas o processo de escrita é doloroso sempre.
·Há um caminho para começar a escrever: idéia, sinopse. Toda história implica em uma estrutura.

CONTISTAS:

·Julio Cortazar;
·Jorge Luiz Borges;
·Clarice Lispector;
·Machado de Assis;
·Tchecov

DICAS PARA ESCREVER MELHOR

·É na vida que está a maior parte do material literário. As histórias estão bem próximas. Use a memória sem medo.

·O que oferece o maior aprendizado para o escritor iniciante é a própria vida. Vá fundo e dê vazão às suas emoções pessoais.

·Um escritor deve conhecer bem o seu ofício. Estude muito.

·Carregue sempre caneta e papel no bolso - ou agenda eletrônica: anote tudo o que pensa e quer.

·Leia muito, sem preconceitos: os clássicos e os contemporâneos, os brasileiros e os estrangeiros. Não deixe de ler o que você realmente gosta, na hora e no ritmo que quiser. E sempre guiado pelo prazer - quando a leitura parecer pura obrigação, esqueça.

·Escreva regularmente e deixe os textos descansando. Volte a eles de tempos em tempos e os reescreva.

·Não acredite no mito de que quanto mais louco você for e mais sofrimento tiver, melhor será sua literatura. Um escritor mediano com a cabeça no lugar tem mais chances do que um maluco.

·Seu estilo é seu maior patrimônio. Ouça sua voz e seja fiel a ela. Não imite os escritores que você ama (nem os que você odeia).

·Se você transita entre muitas linguagens (romance, conto, poesia, teatro, etc.), cuidado. No começo da carreira, é mais prudente escolher um caminho e aprofundar-se nele do que ficar pulando de galho em galho. Deixe a diversificação pra mais tarde.

·A função da boa literatura não é entreter e deleitar, mas inquietar e provocar o leitor.

·Oficinas literárias são boas experiências, mas é preciso saber tirar o melhor delas.

·Em suas leituras, preste atenção a todo tipo de recurso narrativo que os outros escritores usam. Veja como mexem com estrutura, trama ou ausência de trama, construção ou não de personagens, ponto de vista narrativo, etc. ,

·É útil saber o que os outros escritores pensam sobre seu ofício. Descubra o que eles dizem a respeito em entrevistas e depoimentos. Se possível, converse com muitos deles, mesmo que tenha de vencer uma natural tendência dos literatos para a introversão e o isolamento.


EXERCÍCIO EM AULA: CRIAÇÃO DE PERSONAGENS

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O ASSASSINO DA MALETA

Célia e Denise se conheceram no primeiro dia de aula do curso de Jornalismo, após um trote sofrido recolhendo moedas dos motoristas que passavam em frente ao prédio da Faculdade de Comunicação.
Terminada a brincadeira, que ambas achavam de muito mau gosto, calouros e veteranos sentaram-se em um bar nas redondezas para gastar o dinheiro arrecadado. Apesar de não concordarem com o tipo de recepção que lhes fora dada, as novas amigas gostaram da idéia de conhecer outros alunos enquanto jogavam conversa fora e bebiam algumas cervejas. As aulas haviam começado no auge do verão, o que fazia daquelas noites de estudo, um verdadeiro martírio.
Ao longo das primeiras semanas, as duas já pareciam grandes amigas de infância e durante as aulas passaram a tecer comentários sobre seus colegas de classe. Ambas tinham imaginação fértil e não demorou para que um aluno acabasse virando alvo de sua atenção.
- Dê, você notou como aquele Maurício é esquisito?
- Na verdade só tinha achado ele meio chato. Sempre tem posições tão inflexíveis nos debates.
- Dá uma olhada nas botas dele! Você assistiu aquele filme, “A morte pede carona”?
- Hahaha! Não assisti, mas realmente, aquelas botas são meio sinistras. Ainda mais neste calor!
- É menina, ele deve ser coveiro ou coisa parecida.
As duas acabaram rindo tão alto que o professor de Sociologia as notou e fez questão de que partilhassem seus pontos de vista com o restante da classe, esperando que ficassem constrangidas, mas Denise acabou fazendo uma observação pertinente à discussão em pauta.
Maurício, por sua vez, era um aluno mais velho, casado e com dois filhos. Era responsável pelo jornal da Ong ecológica onde trabalhava, mas como sua formação era em biologia, resolveu então cursar Jornalismo. Suas opiniões durante as aulas revelavam uma personalidade austera e intolerante quando o assunto era o descaso dos jovens por Ecologia e Política. Na maior parte do tempo, permanecia calado, com uma expressão de cansaço como a de quem trabalha duro para dar conta de todas as responsabilidades que devia ter.
Ainda assim, Célia e Denise passaram a reparar cada vez mais naquele aluno misterioso e teorizavam, sobre o ele fazia fora da sala de aula.
- Célia, olha! Olha a maleta que o Maurício trouxe hoje!
- Nossa! Que maleta enorme. O que será que tem lá dentro?
- Aposto que tem um corpo! Ele cortou alguém em pedaços e vai enterrar! Ai meu Deus! Ele é um assassino!
- Calma, Cé! Não deve ser nada de mais. Vamos perguntar a ele.
- Você está louca? E se ele for um assassino? O “Assassino da maleta”! Se perguntármos, ele nos mata!
- Hummm... Já sei! Vamos segui-lo após a aula.
- Ah, não sei. Vai que ele perceba.
- Não irá. Serei discreta.
Então, as duas amigas sairam da aula e trataram de não perder o suposto assassino de vista.
Maurício ajeitou a maleta e subiu em sua moto, sem notar que suas colegas o seguiam. Rumava em direção ao centro da cidade que, além das boates de strip-tease e casas de prostituição, era também onde se localizava o maior cemitério da região.
- Não te disse, Denise? Ele ele está indo para o cemitério. De certo, como é coveiro, pode se livrar do corpo sem que ninguém perceba.
- Acho que você está exagerando. Não acha que se houvesse um assassino à solta por aí, os jornais teriam noticiado?
- Às vezes não. De repente, não querem causar pânico à população.
Mal Célia terminara sua frase e Denise soltou um grito seguido de uma freada brusca: Não havia notado o sinal vermelho e quase colidira com um caminhão.
- Droga! O perdemos de vista. – Disse Denise inconformada.
- Não perdemos não! Olha ele ali! – Célia apontava para um motoqueiro a uns metros de distância.
- Tem certeza? Eu sou meio míope e estou sem meus óculos.
Então, quando se aproximaram, notaram que aquele não era o assassino que perseguiam.
- Não esquenta, Célia. Tentamos novamente amanhã.
- Ao menos agora temos certeza de que ele seguia para o cemitério.
- Ainda não temos certeza de nada, Cé! Até onde sabemos, ele poderia estar simplesmente cortando caminho para casa.
- Ahan... Para mim é bem outra coisa que ele anda cortando.
Nos dias que seguiram após a perseguição quase fatal, a ausência de Maurício fora notada pelas duas amigas, o que só fez sua curiosidade aumentar ainda mais.
Quando finalmente Maurício voltou às aulas, alguns dias depois do ocorrido, parecia ainda mais cansado e desta vez, além das botas e da maleta, havia alguma coisa mais estranha a seu respeito: ele parecia estar salpicado de purpurina rosa!
- Denise, ele matou novamente e agora posso afirmar que foi uma mulher! Não teve nem a decência de tomar um banho antes de vir para cá! Acho que devemos avisar a polícia.
- Não vamos fazer nada até ter absoluta certeza do que está acontecendo.
E tão logo a aula terminou, as duas rapidamente se puseram a seguir Maurício que parecia ter pressa naquela noite. Conseguiram segui-lo de perto até o centro da cidade, onde estacionaram e fizeram uma parte do percurso a pé.
- Anda Célia! Iremos perdê-lo se continuar nessa velocidade.
- Ai, calma! Eu estou de salto! Malditos saltos plataforma! Vou acabar caindo aqui nessa buraqueira. E também não quero que ele nos veja.
- Tudo bem, mas tenta andar mais rápido. Opa! Para, para! Olha ele ali, conversando com aquela mulher na porta da boate.
- Essa não! Deve ser sua próxima vítima. Se não fizermos algo agora, ela estará em pedaços em breve.
- Vamos chegar mais perto e tentar ouvir o que estão dizendo.
As duas se esconderam atrás de um carro, mas conseguiram chegar perto o suficiente para ouvir uma parte da conversa entre Maurício e a mulher.
- Sim, sim! São mesmo de matar – dizia Maurício ao som das gargalhadas da mulher que devido à pouca roupa que usava, entregava que deveria trabalhar na boate de strip-tease.
- Ai, Mau-Mau! Você é mesmo uma comédia. Nos vemos depois do show então, certo?
- Claro, xuxu! Estarei esperando para saber sua opinião sobre o que conversamos.
Impossível saber quem estava mais descrente com a conversa, se era Denise ou Célia. As duas simplesmente se entreolharam: - “Xuxu”???
- Nossa, se é com esse papinho que ele consegue suas vítimas, ele não deve matar muita gente. – Comentou Denise ainda não acreditando que aquele homem de expressões tão duras estava tão à vontade conversando com uma dançarina de boate.
- Agora teremos que entrar e ver onde isso vai dar! Devíamos ao menos deixar a polícia de sobreaviso.
- Não existe isso, Célia! Ou temos provas concretas, ou estaremos encrencadas se fizermos uma falsa denúncia.
- Mas e se conseguirmos as provas quando for tarde demais? Não quero ser cúmplice de assassinato! – Àquela altura, Célia já estava com uma voz de choro.
Night club e American Bar” – go go boys e go go girls. Era o que se lia no letreiro do lugar que era um dos mais procurados do pedaço.
As duas entraram na boate tentando ser o mais discretas possível, mas logo foram notadas ao fazerem o maior escândalo quando o go go boy “Mau-Mau” apareceu rebolando no palco, trajando uma fantasia de mecânico que deixava grande parte de seu corpo à mostra.
- Denise, você está vendo o mesmo que eu?
- Não acredito! Aquele é mesmo o Maurício?
- É ele sim... Posso ser míope, mas aquelas botas e aquela maleta são inconfundíveis!
Apesar do estardalhaço, Maurício não havia notado suas colegas no bar da boate e fazia sua performance com a maleta de ferramentas que, ao ser aberta, liberava uma série de serpentinas coloridas e muita purpurina rosa.
Célia e Denise estavam aos risos quando “Mau-Mau” se aproximou nitidamente envergonhado por encontrar suas colegas de classe ali.
- O que fazem aqui?
- Nós o seguimos Maurício. Célia e eu achávamos que você era um assassino.
- Assassino? Estão malucas? De onde tiraram isso? E agora, o que pretendem fazer já que sabem o que realmente faço?
- Em primeiro lugar – disse Célia, já mais calma – devemos nos desculpar por nossa imaginação tão fértil. Em segundo, não contaremos a ninguém que você é gay. Ninguém tem nada a ver com isso.
- Não sou gay. Eu simplesmente faço estas performances porque um amigo meu me indicou e só o que ganho na Ong não estava dando para bancar todas as contas, ainda mais porque minha mulher está grávida novamente.
- Ela sabe sobre este seu outro emprego? – perguntou Denise.
- Sabe sim, mas por razões que vocês devem entender, também não comenta com ninguém. Aliás, ela costuma vir aqui de vez em quando. Nossos filhos não fazem idéia, mas não pretendo dançar por muito tempo.
- Não deveria se envergonhar do que faz! Você dança muito bem.
Tão logo Denise terminou de elogiar a performance de Maurício, os três se juntaram à mulher que estava com ele na frente da boate e conversaram por horas. As amigas malucas explicaram de onde tinham tirado a idéia de que ele fosse o “Assassino da Maleta” e Maurício explicou que quando mencionou anteriormente que “eram mesmo de matar”, se referia às botas que machucavam seus pés.
Após todo o mal-entendido ter sido esclarecido, Denise e Célia passaram a frequentar a boate onde seu mais novo amigo trabalhava. Conheceram sua esposa e passaram a fazer todos os trabalhos da faculdade juntos. No entanto, não demorou muito para as duas acharem uma nova “vítima” para sua imaginação aguçada e logo estavam as duas cheias de teorias sobre uma outra aluna da classe.
(Daniela Marino).

quarta-feira, 19 de maio de 2010

(CRÔNICA) MORRO DE SAUDADE

Malas prontas e um tempo só para relaxar. Do pequeno avião, lá do alto, o mar parece uma esmeralda gigante, brilhante e translúcida. Chegamos e dentes muito alvos nos sorriem dando as boas-vindas. Coqueiros enfileirados apontam o caminho do descanso. Sebastião nos avisa: - O bangalô está pronto! Queiram, por favor, me acompanhar.
Era a minha terceira estadia naquela espécie de paraíso. O lugar combina com a harmonia, mas por não gozar desse estado de espírito, saí de lá em débito nas duas vezes em que o visitei. Nas ocasiões anteriores passara a limpo as minhas uniões. Ali germinaram decisões que deram um desfecho a relações afetivas desgastadas. A paisagem perfeita não combinava com a tempestade interior que se instalara em mim. Sim, eu me sentia totalmente nublada no outono de 2005.
Voltar à ilha era um tira-teima. Eu me sentia ensolarada dessa vez, revigorada por um amor maduro e sereno, daqueles que a gente se sente acolhida, à vontade para se lambuzar e sorver até a última gota, como a saborear uma fruta suculenta, cujo néctar escorre pelos braços a cada mordida.
Reconhecia agradecida que ele adoçava o meu paladar e a minha alma, mas principalmente porque eu já experimentara a inanição. O amor de agora era valorizado pela bagagem do passado, como deve ser quando a gente aprende com os tropeços e tombos de outros tempos. Felizmente, as feridas foram cicatrizadas e o coração resoluto queria abraçar o afeto.
Longe da agitação e dos congestionamentos, no lugar a tranqüilidade nos invade por todos os poros. As praias não têm nome. Foram apenas numeradas para o turista poder se guiar. Da primeira à quinta, águas mornas e calmas, verdadeiras piscinas naturais, vegetação rica e temos boas horas de caminhada pela frente ou até que a maré suba nos lembrando que é hora de voltar.
O sol era uma presença amiga e constante naqueles dias claros, quase um milagre, quando lembrávamos que deixamos Salvador com o céu encharcado. E se o dia esbanjava luz, a noite também nos reservara um palco iluminado, só que quem garantia o show eram as estrelas. O firmamento era um tapete negro coberto de brilhantes e volta e meia um deles despencava sobre nós – eram as cadentes – Vamos fazer um pedido?
Eu na minha terceira temporada em Morro de São Paulo só sabia agradecer. Daquele inverno com ares de verão empresto o slogan local e repito para mim mesma: “Morro de São Paulo, morro de saudade!”
(Adriana Bispo).

(CRÔNICA) A BENÇÃO DA CRENÇA

Era 23 de abril. Dia de celebrar o santo guerreiro. Ogum ou São Jorge é um dos ícones do sincretismo religioso que o povo incorpora sem reservas. Há lugar garantido para a fé no coração do brasileiro. O nome não altera a essência de um soldado valente que enfrentou o exército e venceu o dragão. É a representação do mal sob controle.
Chove bem fininho e os devotos rezam para que, na hora da procissão, São Pedro em parceria dê uma trégua para a imagem do santo desfilar pelas ruas do Macuco. A missa das 19 horas promete grande público – comerciantes, donas de casa, crianças, empresários, trabalhadores portuários, afortunados, gente simples – todos unidos pela crença no santo destemido.
A igreja torna-se pequenina para a legião que deposita ali os seus desejos e a gratidão por mais um ano, livre das labaredas de muitos ‘dragões’ do dia a dia. No exercício da fé não há classes sociais, castas, bens ou status que possam nos apartar – temos em comum a confiança em um poder maior que nos garante a proteção.
Caminho rápido pensando na presença de Jorge em minha vida – sim, nos tornamos tão próximos que às vezes esqueço que, além de meu amigo, ele é um santo glorioso, mas não tem aqui um traço qualquer de desrespeito. É porque Ele é muito íntimo mesmo.
Percebo que um garoto emparelha a sua bicicleta comigo. Me regula dos pés à cabeça e fixa o olhar mais precisamente na minha bolsa. Por um momento eu gelo de medo, pressinto o perigo. De repente decido encará-lo e digo mentalmente: “Nem tente, daqui você não vai levar nada. Eu estou vestida com as roupas e as armas de Jorge, para que meus inimigos tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me toquem, tendo olhos não me vejam e nem pensamentos eles possam ter para me fazerem mal!”. Olho para o garoto e em cima da sua cabeça lá está Ele com o seu cavalo branco e a capa vermelha tremulando no ar... O menino abaixa a cabeça e segue o seu rumo. Respiro grata e aliviada.
Sigo o meu caminho e chegando à igreja mais uma vez reverencio a sua presença benfazeja em minha vida. Agradeço e renovo os pedidos por mais um ano. Antes de ir embora me aproximo de sua imagem. O coração bate forte. Me emociono. Ele majestoso em seu cavalo parece me fitar. Toco em seu joelho e sinto uma vibração que só experimenta quem se abre verdadeiramente para o divino. Me despeço com aquele conforto espiritual que me faz mais forte e abençoada. É a benção da fé!
E é bom registrar que no céu despontam estrelas, coloridas pelos fogos rubros da procissão. A chuva recuou para a multidão passar. Salve Jorge!
(Adriana Bispo)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

MINICONTOS E MICROCONTOS (24.04.2010)

Entrega
Prévia saudade de si mesma.
Apaixonadamente mergulhava nesse encontro tão esperado.
Solidão
Na cadeira de balanço tecia seu tricô para o único amor que lhe restara.
Seu gato angorá.
Extravagância
Tudo era novo naqueles sabores exóticos.
Alcachofra. A palavra já soara estranha.
Ela que fora criada à base de farinha de mandioca e água...
Fim do túnel
Escuridão. Anos demasiados mergulhados no abismo de si mesmo.
Tirado o curativo, enxergava o mundo resplandecente.
Impotência
Último desejo dele antes de partir da vida: sentir a doçura de seus lábios.
Estudara tanto para salvar vidas e agora nada a fazer.
Tudo que pode dar-lhe é aquele beijo salgado de lágrimas.
(Carla Ziemkiewicz)

MINICONTOS E MICROCONTOS (24.04.2010)

Farsa
Não sou por mim.
Existo reflexo.
Como a lua, o que brilho é luz do outro.
Casamento
Depois de vinte e cinco anos ganhara um brilhante que reluzia sobressalente sobre o passado.
Amizade, cumplicidade, alegrias e dores já tinham a dureza do tempo.
Despedida
Seus olhos e sentimentos deitavam sobre o passado.
A cena: um aceno na estação de trem.
Lamparinas
Águas desceram por Ouro Preto adornando de cinturas a geografia das ruas.
Hoje só lamparinas revelam a história desse passado.
Apaixonamento
Amanheceram com gosto de amêndoa. Cortinas dançaram na luz da manhã. Estavam de coração suspenso.
(Anita Bueno)