quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Insensatez

Trabalho coletivo a partir da palavra Insensatez

A insensatez impera em nossos dias atuais. A falta de bom senso faz com que os indivíduos ultrapassem os limites do razoável deixando insuportável a vida de muitas pessoas.
No telejornal da noite, uma notícia me chamou a atenção: “Uma mãezinha ainda muito jovem, após dar a luz a uma criança, colocou-a em uma caçamba, destas para entulho, virou as costas e foi embora”.
O repórter apressado, cumprindo o timming do jornal, perguntava à jovem descabelada e desnutrida o porquê de tão insólito ato.
Insólito? Pensei eu. Não vejo nada de insólito. A caçamba de hoje é a mesma caçamba de ontem, onde ela também tinha sido deixada ainda criança, mas isso ninguém quer ouvir e o tempo do jornal é demasiado caro para explicações estruturais.
O jornalista ficou assustado com o que ouvira e a alma atrapalhada com a mistura de raiva e pena, da mulher e da criança. Perguntou ao vivo e a cores, para que todo o país soubesse da coragem dele.
- E a senhora, como se sente com este ato?
- E o senhor, neste terno de rico, o que pensa da vida?
O jornalista que não esperava em nenhum momento esta pergunta mordaz fingiu que não escutou e continuou a reportagem. Naturalmente, deveria esperar esta reação pois os mais favorecidos se dizem solidários com os mais fracos, mas se for para mover um neurônio com o objetivo de melhorar a realidade deles, é hora de se esquivar.
Então, eu é quem pergunto:
- Você acha que com esse gesto irá resolver o problema da criança?
- Você acha que é só mostrar a dura realidade que todos conhecem?
De belas palavras o mundo está cheio. O inferno também. Ninguém queria ouvir falar da mulher que havia sido colocada numa caçamba fazia muito tempo, a noticia não estava na mídia. Mas queriam saber do bebê na caçamba, da notícia de hoje.
O que poderia ter sido notícia ontem, já era. Checar a raiz do problema daria muito trabalho. Uma pena, pela visão curta do profissional. Poderia render-lhe um bom prêmio como reportagem destaque, seguido de um livro reportagem, com um fato que se arrastou de uma geração para outra. Se ninguém se importar em buscar a causa, quanta violência desencadeará para frente? Onde está a responsabilidade social de todo e qualquer cidadão?
Talvez na insensatez e na falta de conscientização daqueles que viram as costas para um problema social.

A SALVAÇÃO

Thays Morales


Nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante. Situação nada comum nessa época do ano, mas a primavera, este ano, surpreendia pela intensidade e durabilidade das chuvas. Tanto que o homem vem interferindo na natureza, durante décadas e décadas, com sua enorme capacidade de destruição, que muitas vezes tem-se tornado vítima de sua própria ação maléfica.
Lembro que algumas semanas atrás, assistindo ao noticiário das 8, fiquei muito comovida ao ver uma cena tão impressionante quanto heróica. Felizmente, ainda há no mundo seres humanos tão extraordinários nas suas atitudes: salvando a vida de seu semelhante e colocando a sua própria em segundo plano. Foi isso que vi com detalhes no jornal e em meio a tantas decepções com nossa espécie, senti um orgulho enorme de nós, humanos.
Uma mulher, usando um capacete, tentava salvar sua moto durante a enchente, numa cidade do interior de São Paulo. Dois ou três homens gritavam para ela largar a moto enquanto um deles segurava com força uma corda que sustentava um outro homem que, por solidariedade, se agarrava à moça na tentativa de evitar sua morte, pois a correnteza era violenta e impiedosa e dela dificilmente alguém escaparia com vida.
No momento em que vi a mulher sumir, embaixo d’água, pensei que mais uma vida estaria perdida, como tantas outras. Assisti pela televisão à dor do homem que pensou ter fracassado na luta pela vida de outrem. Mas, mesmo com toda a enxurrada e a agressividade das águas, um milagre parecia ter acontecido. Porque, depois de alguns minutos tensos e eternos, apareceu uma mão fora da água em busca de socorro. A mulher estava dentro de um carro e tinha conseguido sair dele, tendo sua vida salva e protegida, mais uma vez, com a preciosa ajuda do mesmo homem desconhecido de antes.
Chorei ao ver o resgate da moça e a alegria de homens que nem a conheciam, mas que foram fundamentais no curso da sua história. É espantoso como nós, seres ditos humanos, somos capazes de atos louváveis iguais a esse, mas, também, capazes de causar tanta destruição e interferência na natureza a ponto de sofrermos as piores conseqüências, como no caso das enchentes.
Nós destruímos a natureza sem pensar nas conseqüências, durante anos e anos, para depois nos perguntarmos porque tanta enchente, tanto desequilíbrio. Está na hora de agirmos como esses homens. Eles salvaram uma vida. Nós temos que salvar o planeta.

Abel e o irmão

Paulo Mauá

Panos ensangüentados, barbas mal feitas e corpos confusos.

A precária trincheira era o resultado da esperança ceifada dos que defendiam o arraial até o último respirar. Para os dois rapazes, poderia ser o último colo.
A quarta expedição, formada pelo exército do governo federal, homens de confiança dos fazendeiros locais e membros atuantes da igreja, avançava implacavelmente sobre os últimos resistentes. A ordem recebida de que ninguém deveria sobreviver para contar a história estava estampada no rosto de cada soldado.
Aos capturados, a degola. O único jeito de sair vivo daquela tragédia era estar do lado mais forte ou fugir como rato do mato.
Abel e o irmão mais velho estavam apavorados, sem ferimento aparente, sem munição, misturados a restos de gente de olhos voltados para o céu de um azul permanente à espera de um milagre. Poucas eram as alternativas de sobrevivência.
Restava sim, a peixeira na cintura e a vontade aperreada de vencer, mais uma vez, um momento crítico na vida. Estavam munidos de fé e perseverança perante o estado das coisas e das pessoas do nordeste brasileiro.
A tela triste pintada com os pincéis da fome, seca, violência, abandono político, foi pano para o beato Antonio Conselheiro criar uma cidade com mais de 5000 casas de pau a pique e uma multidão de fiéis. Prometia, com populismo e inteligência de líder nato, a nova república com fartura de trabalho, comida e a condição do retorno à monarquia.
Os dois irmãos buscaram por tanto tempo o reino encantado e um rei de coração aberto e pleno de boas intenções.
Abel nasceu, a mãe morreu e depois de uma década abandonados no pó e vivendo de resto d´água, ele e o irmão largaram o nada e tomaram a trilha para o oeste do sertão baiano. Conheceriam o tal de mar, grande lago com gosto de sal, verde como os olhos de Abel. Fincariam o pé em uma pacata aldeia de pescadores e teriam filhos, casa de verdade, uma mulher para acarinhar e uma jangada.
Mas, vira aqui, vira ali, calor demasiado na moleira e desorientados, rumaram para o norte do estado. E nada de aparecer o mar. Há um ano e meio depararam com o amontoado de pernas e miséria chamado Canudos.
A acolhida inicial dos moradores foi de imensa alegria para que os dois ficassem e criassem raízes. Com o passar do tempo, o paraíso cantado na literatura de cordel não era muito diferente do lugar onde haviam nascido.
O íntimo da alma, assustado com o fanatismo dos jagunços e dos sertanejos desempregados, entrava em desespero com o assobio das balas sobre as cabeças. O contingente de inimigos era maior que os anteriores e não parava de avançar.
O irmão mais velho pressente o que está para acontecer e toma a decisão:
- Corre, Abel, vem, vem.

Ergue-se da vala fétida, puxa o braço do irmão e, destrambelhados na direção oposta do batalhão de assassinos, tropeçam em corpos e quimeras abandonadas.
A última cerca que limita a vila está a menos de cinqüenta metros.
O som dos invasores está distante, como se pertencesse a um passado sem volta. Isso é bom sinal. Já podem escutar a melodia matinal do juriti, sentir o frescor da sombra das árvores copadas do quintal da nova casa e os respingos do riacho sinuoso no fundo do sítio fértil.
Os passos ligeiros das sandálias de couro cravando o chão e a respiração ofegante dos irmãos ditam o ritmo da alucinada corrida. A linha de chegada está próxima. De repente, um som agudo precede o barulho seco de um corpo no solo árido.

O mais velho pára, gira o tronco e vê um saco úmido de carne e suor. De joelhos, segura com carinho a nuca do irmão.
- ... o que aconteceu ? Porque paramos?
- Calma, Abel. Cê vai ficá bem. Respira fundo.
- ... eu... tô bem...

Naquele instante, a ilusão do mundo justo está desaparecendo.
- ... estou com sono... quero dormir ...
- Não desista. Olha pra mim. Olha pra mim !!!
- ...noite passada... tive um sonho...

O irmão tentava estancar o fluxo de sangue sem sucesso.
-... sonhei que chovia uma chuva colorida... todas as cores... sem parar... chovia tanto... um jardim... muita árvore... frutas... parecia um açude bem grande... que nem deve ser o tal do mar... devíamos ter ido pro mar... verde...
- Ainda vamos ver o mar. Não feche os olhos. Fica comigo !!!

Uma avalanche de passos apressados, gritos e galopes cresce lentamente.
- ... e chovia... dia sim, outro também... e nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante... a gente pegando os figos... de dar água na boca... o mais bonito pra mãe...

O som avassalador dos invasores aproximava-os da chacina.
- ... que barulho é esse... é a chuva ?
- É. A chuva colorida tá vindo.

No abraço exagerado, a peixeira atravessa Abel como beijo fraterno de misericórdia e antes que os fuzis do pelotão os alcance, ela desfere mais um golpe. O último.
Os recém chegados crivam, com centenas de balas inúteis, os sonhos interrompidos de Abel e o irmão.

CONVERSA DE BAR

Antonio Taveira

─ Uma cerveja estupidamente gelada...
Enquanto o garçom se afasta para atender ao meu pedido, olho ao redor do bar quase vazio àquela hora. Espero que aqueles dois não demorem - penso... Mas logo sinto um tapa leve nas costas.
─ Já que foi o primeiro a chegar, ganhou o direito de pagar a conta. Garçom, traz mais dois copos.
─ Aposto que vocês fizeram de propósito, ficaram escondidos esperando eu entrar sozinho.
─ Nós jamais faríamos isso com você!
─ E então aquele timinho tomou outra surra do Palmeiras...
─ Nem me fale, dessa vez acho que o Luxa não ta com nada. Mas não vamos falar de futebol, porque se meu time está lá embaixo e esse ano não dá mais nada, o seu também não está tão bem.
─ Pelo menos já tamo na libertadores. È nóis na fita, mano!
─ Mas sabe que time sem passaporte não viaja prá muito longe, vai cair na primeira fase.
─ Esse ano vai ser dos Porco e nem os Bambis vão chegar. Vamos mudar de assunto, mas não pode ser automobilismo, porque o Rubinho Pé de Chinelo deu uma esperançinha prá gente que já acabou. O Button vai levar e aqui no Brasil.
─ Vamos falar daquela nova secretária do advogado do 4° andar.
─ Quê que é aquilo cara? O velhote ganhou aquele avião em alguma ação, só pode ser, ele num ta com essa bola toda não.
─ Toma cuidado, cara, dizem que ela é caso do chefão da área da marketing. Ele que arrumou um lugar pra ela na empresa e prá num dar bandeira, colocou na advocacia.
─ Vocês vão querer beliscar alguma coisa?
─ Traz as pernas da Sheila Carvalho, ou então da Viviane Araújo.
─ OK! Como elas não estão no cardápio, vou trazer o de sempre: uma picanha fatiada no ponto e uma porção de batatas - da portuguesa, certo? Vou trazer mais uma cerveja.
O garçom virou as costas e voltou para o bar.
─ Você falou uma coisa e é verdade, hoje a dolorosa é por minha conta.
─ Que é isso, vamos ratear como sempre fizemos.
─ Me deixa contar esta história. Sabem aquele cara da exportação que se acha bonitão, metido a Don Juan?
─ Sei, o cara é o maior mala.
─ Dizem que já cantou todas do andar dele.
─ Então... Eu estava no cafezinho quando ele chegou e comentei com ele se tinha reparado naquela morena de cabelo curtinho da área comercial.
─ Espera aí, essa mina...
─ Calma! Eu sabia da história dela. Quando ele lembrou quem era, ficou todo animado e eu dei corda. É uma garota super meiga, carinhosa, além de ser bonita e ter um belo corpo.
─ Realmente é uma bela mulher.
─ Então, cara, que tal investir numa saída com ela? Se você conseguir, eu pago o motel. Se não conseguir, você paga o chopp.
─ Fechamos a aposta. Ele começou o flerte mandando bombom num dia, uma rosa no outro, uma revista feminina, uma ligaçãozinha para desejar bom dia. E assim foi indo, até que chegou o dia da cartada final. Mandou um belo arranjo de flores com um convite para um romântico jantar. Ela ligou agradecendo as flores e disse que daria a resposta às dez e meia na Cafeteria na entrada do prédio.
─ E como você ficou sabendo de tudo isso?
─ Depois que marcou o café, ele me ligou todo feliz já cobrando a aposta. Como eu não queria perder essa cena, desci antes deles e fiquei em uma mesa no canto fingindo ler um jornal. Eles chegaram e eu ouvi toda a conversa.
─ Você gostou das flores? E o convite está de pé?
─ As flores são belíssimas, muito obrigado, mas o jantar eu não vou poder aceitar.
─ Por que? Algum problema comigo?
─ Não tem nada a ver com você, não. Toda mulher gosta de ser mimada, receber atenção, presentes.
_ E ...
_ O problema, colega, é que gostamos da mesma fruta!

DICAS

Verbo Atender

1)Para pessoas, prefira a regência direta(atender alguém).
Exemplos: O médico atendeu o paciente
O prefeito atendeu os pedidos

2) Para coisas, use a regência indireta (atender a).
Exemplos: A garota atendeu aos pedidos do amigo
O homem atendeu à intimação

Atrás/Atraso/Atrasar - escreve-se sempre com s.
Exemplo: Atrás de você tem um cara estranho...

Trazer é o verbo, sempre com z
Exemplo: Garçom, me traz uma cerveja...

Esta conversa não tem nada a ver com você...ou
Esta conversa tem tudo a ver com você.

Haver é verbo

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A Valsa do Adeus

conto de Paulo Mauá

Introdução

Embora conhecida desde o século XV, quando surgiu na Alemanha, a valsa foi consagrada 400 anos depois, por meio da família Strauss, nos saraus vienenses e teve como fiéis seguidores Chopin e Ravel, dentre outros.
A valsa é um gênero musical baseado em compasso ternário, ou seja, três tempos moderados: um-tá-tá, um-tá-tá, um-tá-tá. Portanto, bastam três semínimas por compasso, onde cada semínima é representada por uma nota toda preenchida com uma haste.
A palavra valsa vem do verbo alemão Walzen que significa girar ou deslizar. Para dançar a madrugada adentro, é só seguir o ritmo.

1º tempo do compasso

Estou linda.
O espelho mágico confirma: deslumbrante.
As meninas retocam a maquiagem antes da entrada no salão de baile. Um arrepio percorre meus braços arrebatando o meu espírito e a face não disfarça a despedida do meu sorriso de menina. O peito ofegante prevê a mulher que vem por aí. Que venha!
- Tem rímel?
- Pode pegar.
- Obrigada.
Estamos alvoroçadas e prontas para a sonhada dança com os pares. Silvinha irá com o César. A Rô com o Gabriel. Não sei quem vai dançar com a Aninha Souza. A Aninha Clemente conseguiu fisgar o filho do prefeito. Mateus vai dançar com a Leila. Boa sorte pra ela. E pra ele também. Esses meninos, cheirando a terno alugado, são bonitinhos mas me despertam interesse apenas para um final de semana descompromissado. Quero mais.
Esta noite será a noite.
Se tenho medo? Confesso que sim. Mas sou Amarílis, a guerreira, como minha avó, e sei que a madrugada será a ponte de ida sem volta da terra das brincadeiras inocentes para o reino do ser mulher. Nada pior do que viver sufocada, com o coração marcado pela centelha da paixão improvável.
Adeus para o gosta desse, gosta daquele, panelinhas de comida, brincar de casinha e bonecas. Rasgo em definitivo a sensação ilimitada do faz de conta.
Estou pronta para suportar o amanhã. O risco será meu. Desde o dia em que fiz amor pela primeira vez com o Mateus, assumi o destino. Meu pai nem imagina que não sou mais virgem. Talvez ele saiba e nunca tenha me dito para não me deixar em uma situação constrangedora.
Ele sente até hoje a morte da mamãe, mas não posso me responsabilizar pelo estado sentimental dele nem pelo que ocorreu com ela. Só eu sei como as minhas veias pulsam desde então. A vida é um reino de fatalidades e conseqüências. Não tenho escolha.
- Vamos, meninas, os convidados estão esperando. Vocês são as estrelas de hoje. Quero ver todas sorrindo.
Pronto, a ponte elevadiça já está sobre o poço. Preciso girar meu destino e sair do castelo.

2º tempo do compasso

Estou suando e não sei se é calor ou nervoso. Nunca gostei de dançar e depois de viúvo, fiquei mais travado ainda. Vale o sacrifício pela felicidade de Amarílis. Elas vão demorar muito para aparecer?
Desde a morte de Suzana, tento ser um pai mais atuante. Não sou perfeito, pois não consigo ser o pai carinhoso, o pai príncipe, o pai herói e os outros pais que ela tanto precisa.
Onde está o Mateus? Achei que ela ia dançar com ele, mas a honra foi minha. Ele é simpático, educado, bom menino, ótima companhia para a minha filha, mas Amarílis considera-o infantil. Ela é quem sabe o que é melhor para ela. Às vezes me pergunto se ela ainda é virgem. Se não fosse mais, acho que teria me revelado. Minha bonequinha está deixando de ser criança para virar adolescente.
- Ela está uma mulher feita, né filho ?
- Mãe, a senhora é suspeita: neta querida, mesmo nome que a senhora, sei não.
- Ela já é uma mulher.
Mudaram as luzes, o som, acho que o portão vai abrir. Descem as primeiras meninas e a amiguinha dela da escola é logo a primeira. Nossa, a outra quase caiu. Lá vem minha princesa. Continuo suando frio. Que os céus me ajudem a deslizar pelo salão e não pisar no pé dela.

3º tempo do compasso

Em casa, a nuvem multicolorida de papéis de presente descansa sobre o sofá. A filha está apreensiva. O pai sente-se realizado, mas saudoso.
- Sua mãe ficaria muito feliz em compartilhar este momento conosco.
Amarílis desconversa:
- Olha, um colar de prata com um anjinho. Ganhei da vovó. Adorei.
O chuveiro ameniza o cansaço do pai. Amanhã será outro dia.
- Durma bem, querida.
- Você também. Te amo, pai.
- Também te amo.
Deitado, lembra dos convidados, da valsa com a filha, da falta que sente do colo da esposa. Os pensamentos entram na fase de turbulência do sono.
A porta do quarto abre silenciosamente.
Passos avançando em sua direção.
O movimento do lençol desperta-o um pouco e ainda confuso sente um beijo leve na nuca.
Será sonho?
Pequenos seios repousam nas suas costas.
Delicadas mãos deslizam à procura do seu sexo.
O susto estanca o coração de imediato e antes que possa girar o dorso, a mulher sussurra em seu ouvido:
- Pssst...faz de conta que eu sou a mamãe.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

DICA: Para escrever números

De um a dez, escreva os números por extenso: dois, nove, etc.

A partir de 11, o 11 inclusive, em algarismos: 15 jovens, 27 soldados .

Exceção: escreva cem e mil.

Use essa mesma regra com os ordinais: primeira hora, quinto aniversário, 15ª vez, 25º ano consecutivo.

PENSAMENTOS IMPERFEITOS

Ana Lucia dos Santos
Nunca entendi direito o comportamento dos brasileiros com relação às questões de princípios e ética. Sempre me incomodou a tendência das pessoas em quererem alguma vantagem, importando pouco o preço a pagar. Uma benesse qualquer, algum brinde, um prêmio, merecido ou não, o que me faz lembrar a frase popular “injeção de graça, aceito até na testa”. Ou aquela “propaganda do Gerson – jogador de futebol - em que dizia: “gosto de levar vantagem em tudo, certo!

Quando vi, nos últimos dias, o resultado de uma pesquisa que falava do perfil “ético” dos brasileiros, em que, mais de 90% das pessoas se declaravam contra práticas de corrupção, ao mesmo tempo em que 83% admitiam terem se envolvido em pequenos atos de corrupção, práticas ilegítimas, vendas de votos, etc., me senti de alguma forma contemplada em minhas inquietações.

Apesar disso, persistiu a vontade de compreender este fenômeno que me pareceu semelhante a um paradoxo, a um pensamento imperfeito. Todos nós sabemos que acontece exatamente assim, basta olhar ao redor, no cotidiano da vida de cada um de nós. Com toda a indignação com o tal perfil ético dos brasileiros, rememorando o meu dia, ainda hoje me flagrei cometendo dois pequenos deslizes. Um com o homem que veio entregar o gás, para quem dei uma gorjeta por ter trazido o botijão e colocado debaixo da pia; outro com o menino do supermercado que trouxe as compras, depois do esforço que fez pra subir com tudo no elevador, além de ter feito a entrega de bicicleta num dia de chuva. Para o menino, a gorjeta foi maior. Ambos os serviços já estavam pagos pelos empregadores, não sei se bem pagos. Mas tudo o que fiz foi estimular uma ética corrupta, a tal da gorjeta. Ou seja, fico indignada e me posiciono contra a corrupção, mas sem perceber, cometo pequenas transgressões. Senti-me envergonhada. Vergonha que me fez lembrar meu pai.

Era um homem honesto. Imagino que se ouvisse a notícia da pesquisa, oscilaria entre esbravejar indignado, intercalando com momentos de tristeza pelos cantos da casa, balançando a cabeça num gesto de desaprovação. Era do tipo de pessoa que perdia o sono por uma conta atrasada dois ou três dias. Na condição de filha, me orgulhava. Mas a verdade é que não herdei toda aquela rigidez. Se assim fosse, estaria há várias semanas sem dormir. Mas também não chego, ou não chegava a me achar parecida com os 83% dos brasileiros da pesquisa.

Apesar dos dois pequenos deslizes de hoje, saio em minha defesa, comprovando com uma situação emblemática. Há alguns anos atrás, tive um cargo de gerenciamento num serviço público. O cargo, modestamente, acredito, foi pela competência, embora também possa ter sido por conhecer pessoas que tinham poder para lá me colocar.

O problema é que eu não segui o “script” esperado pela família. Não tentei “colocar pra dentro” parentes desafortunados. E eram muitos os que me cobravam, dizendo: - É impossível que você, nesta hora, não pense na sua família, todo mundo faz isto, ajuda os seus, etc. Eu pensava, mas achava que não podia cair nessa esparrela. Por isso, acabei incompreendida e caí, sim, no ostracismo dentro da família, por sequer ter tentado dar uma força, indicar alguém. Até hoje ainda amargo um pouco deste isolamento.

Não sei se é o caso de se condenar os brasileiros. Há que se entender. Apesar de achar ser coisa para cientistas sociais e analistas de pesquisas, ainda assim, tentando apaziguar a consciência devido ao meu próprio envolvimento nos pequenos atos de corrupção, “meto a minha colher” e tento explicações.

Somos um povo que, na sua formação, viveu muitas influências. Quase 400 anos depois de ser “descoberto”, o Brasil ainda era uma sociedade que havia acabado de sair do regime escravocrata (sem esquecer que foi o último país a abolir oficialmente a escravidão). Naquela época, regra geral, os “cidadãos livres” e mais abastados tinham aversão à idéia do trabalho pesado, duro. Era coisa indigna, para negros e escravos.

Bem, se tomarmos distância e olharmos numa visão panorâmica o que aconteceu com o Brasil nos quase 110 anos seguintes aos referidos 400, que é onde estamos hoje, foi uma imensa transformação, quase um salto mortal dado da noite para o dia.

Do ponto de vista da longa história da humanidade, estes 110 anos significariam um pequeno lapso de tempo, como o passar das horas de uma noite. Corresponderia, numa visão kafkiniana, à metamorfose sofrida pelo personagem central de seu livro, que acordou numa certa manhã e havia se transformada numa grande barata. Só que no caso do Brasil, uma metamorfose invertida. Dormiu sendo uma enorme barata cascuda e acordou no dia seguinte como ser humano.

Neste caso, o Brasil vai precisar se esforçar muito, enfrentar o medo de rever conceitos, resgatar valores e princípios, ter comportamentos mais humanos. Ou, se não conseguir, como o personagem de Kafka metamorfoseado, morre como uma barata gigante e cascuda, da qual ninguém nem o mundo sentirão falta.

FAZ DE CONTA

Viviane de Almeida

Vamos brincar? De que? De faz de conta. Faz de conta, sabe? Você imagina que eu sou e eu deixo você imaginar. Nunca? Não acredito que você nunca brincou desse jeito. Quer experimentar? Sei, tem medo. Eu vou aos poucos.... e podemos parar quando você quiser.

Começamos com o tempo. Faz de conta que o tempo parou. Faz de conta que o meu cabelo é vermelho.

Falsa ou natural? Provavelmente você não saberia fazer essa distinção. O que é bom, porque a minha única alternativa é fingir que sou

Quer que eu faça de conta que sou ela? Eu faço. Não é difícil e por você faria qualquer coisa. Ficou triste? Falei alguma coisa errada? Já sei. Ela é insubstituível. Desculpe, só queria ajudar.

Tudo bem, eu entendo. Conhece as regras do jogo. Se quiser parar, é só levantar a mão.

Fala, eu não me importo. Estou acostumada. E os olhos, azuis ou verdes? Parecidos com os meus? Levemente, você diz. Então deveriam ser verdes. A luz do abajur engana. Disfarça.

Conheciam-se há muito tempo? Uma vida inteira? Que bonito. Ninguém hoje vive mais para sempre. Eu? Não quero falar sobre isso. Estou aqui para fingir.

Sente muito sua falta? Saudade é difícil, mesmo. E as mãos, como eram? Pequenas, delicadas. Aposto que eram pequenas. Assim, como de uma criança. Como eu sei? Observo as pessoas.

Sente falta dos dedos de fada dela. Pequenos. Redondos. Dispostos.

Quer ver eu acertar de novo? Não gostava de maquiagem. Tinha sempre a cara limpa. Está surpreso? Não fique.

Eu só observo as pessoas.

Era esse o nome dela. Bonito. Nome de princesa. Não chore. Eu entendo.

Vamos fingir que a minha mão é pequena. Estou tirando a maquiagem, espere um minuto.

Minhas mãos são pequenas, não uso maquiagem. Meu cabelo é ruivo e estão levemente presos com a presilha de pedras e flores que você trouxe. Não era desse lado que ela usava. Quer colocar?

Passe-me o espelho. Que colar lindo. São pérolas? Verdadeiras? Engraçado... Assim, quando vejo minha imagem refletida, minhas mãos parece que encolheram.

Quer que eu tire o esmalte? Isso não posso. A sua hora já terminou.

DICA: Este ou Esse?

Este – designa pessoa ou coisa próxima de quem fala.
Exemplo= Este livro é meu.

Esse – indica pessoa ou coisa um pouco afastada de quem fala.
Exemplo: Cuidado com essa cadeira.

A vírgula

Vírgula pode ser uma pausa... Ou não.
Não, espere.
Não espere.

Ela pode sumir com seu dinheiro.
23,4.
2,34.

Pode criar heróis.
Isso só, ele resolve.
Isso só ele resolve.

Ela pode ser a solução.
Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião.
Não queremos saber.
Não, queremos saber.

A vírgula pode condenar ou salvar.
Não tenha clemência!
Não, tenha clemência!

Uma vírgula muda tudo.

Campanha dos 100 anos da ABI - Associação Brasileira de Imprensa.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Ladrão na era da reciclagem

Rosi Caobianco
Construção de crônica/ conto com a inserção das seguintes palavras: CARTUCHO, COTONETE, CAROCHINHA, CONFISSÃO

Esta foi a manchete que estampou um jornal da cidade de Varginha, Minas Gerais, mostrando que não é só “ET” que aparece por lá, mas também um larápio de cartuchos reciclados. Pedro Fidalgo, um ex-detento, foi preso na tarde de sábado por policiais da região. Pego com a mão na massa, não teve como negar o crime. Ironicamente, ficou entalado na janela lateral da loja de um revendedor de cartuchos de tinta para impressoras diversas.

O desafortunado ladrão já era um antigo freguês da delegacia daquela cidade. Sua ficha contém várias tentativas de roubo, muitos deles realizados com sucesso. Desta vez não deu certo, para sua infelicidade, e o evento lhe rendeu mais um processo para juntar à sua coleção de malandragem.

Fidalgo, como era conhecido, ao deixar o local do roubo, tentou passar por uma janela basculante. Porém, como já não tinha mais o corpo franzino de anos atrás, nesta vez a fuga não deu certo. Com meio corpo para fora e meio para dentro, protagonizou uma cena tragicômica, podemos assim relatar. Ficou preso justamente em suas partes baixas. Todo esforço que era feito pelos policiais para tirá-lo de lá, rendiam-lhe uivos de dor. Precisaram chamar o Corpo de Bombeiros para cerrar a janela e livrá-lo do suplício por ele mesmo criado.

Concluída a maratona de desentalar Fidalgo, levaram-no para a delegacia. Dr. Prestes, o delegado de plantão, já o conhecia e logo falou:

- Você de novo por aqui, Fidalgo?
- Estava com saudades desta hospedagem? Muito bem, conte-me sua proeza desta vez.
Fidalgo fez cara de desentendido e não respondeu.
Dr. Prestes, sem muita paciência, bateu o punho na mesa e vociferou:
- Vamos, rapaz, não está me ouvindo?
Fidalgo continuou calado.
Dr. Prestes esbravejou mais ainda:
-Sargento Meireles, traga-me um cotonete. Acho que o infeliz não está me ouvindo, ou não está querendo colaborar hoje.
- Vou te dar mais uma chance, Fidalgo, comece a falar. O que estava fazendo naquela loja e para quem era esta mercadoria?
- Se não falar logo, eu mesmo vou limpar esses ouvidos para ver se me escuta e confessa de uma vez.
- Vamos lá... Tenho mais o que fazer.
Fidalgo percebeu que o Dr. Prestes não estava brincando. E passados alguns minutos, confessou sua famigerada proeza. Estava realizando aquele roubo para entregar a mercadoria para outro comerciante de cartuchos reciclados na cidade vizinha.
Dr. Prestes prendeu Fidalgo imediatamente e foi atrás também do mandante do roubo. Parecia que o caso renderia vários receptadores.
O acontecido foi uma festa para os meios de comunicação da cidade de Varginha. As fotos de Fidalgo entalado na janela geraram comentários por semanas e mais visibilidade para o meliante. Muitos puderam concluir que as refeições da penitenciária de Varginha fizeram muito bem a ele, pois engordou ano após ano e não se deu conta. Descobriu tarde demais que não podia mais passar pelos basculantes das janelas na hora dos furtos.
A justiça tarda, mas não falha, e chegou mais uma vez a hora de Fidalgo passar outra longa temporada atrás das grades.

O CARA DO XIXI!

MINI CONTO
Antonio Taveira

Exercício com as palavras: CARTUCHO – COTONETE – CAROCHINHA – CONFISSÃO

Beto, eu tenho uma confissão a fazer.
Sabe aquela historia que te contei do cotonete? Então, foi tudo conto da carochinha. Na
Verdade, o cara se urinou todo, enfiou um cartucho de papel na cabeça e saiu do bar com as calças molhadas e deixando um rastro de urina pelo chão.

Conversa de bar

Thays Morales

Uma cerveja estupidamente gelada... Enquanto o garçom se afasta para atender ao meu pedido, olho ao redor do bar quase vazio àquela hora. Mas que estranho, não entendi porque estava assim, tão deserto o bar. Fui lá tantas vezes e nunca vi o local desse jeito. Logo que o garçom chega com a cerveja, minha curiosidade me impele a perguntar o que tinha acontecido aqui.
Ele, com um ar de vergonha e constrangimento, me relata tudo em detalhes:
--- O senhor não sabe?
--- O que?
--- Faz uns dias, aqui mesmo na mesa em que o senhor está um crime aconteceu!!!
--- Meu Deus!!! Por que? Como foi?
--- Uma coisa esquisita. Foi por ciúmes.
---- É? Não me fala...
---- Sim, só que ciúmes de homem por homem. Tenho até vergonha de contar.
---- Por favor, conte.
---- Chegou no bar um casal, homem e mulher. Até aí, tudo normal, né? Estavam tomando cerveja, a mesma marca que o senhor toma, conversando, pareciam namorados.
---- Sim?
---- Em outra mesa, um homem de uns 40 anos, bem apessoado, não tirava os olhos do casal. Encarava mesmo, sem disfarçar. A moça percebeu e perguntou pro namorado se ele conhecia o homem, ele disse que não. Um pouco depois, ela levantou e foi ao banheiro...
---- E, depois, que aconteceu?
---- O senhor não vai imaginar!!! O homem da mesa em frente levantou, caminhou em direção ao rapaz, parou e perguntou: - “Você lembra de mim?”

Eu ouvi tudo enquanto levava mais uma cerveja pra mesa dele. O rapaz respondeu:
- “Sim, perfeitamente, mas preferia não lembrar. E acho melhor você ir embora que a minha namorada já está voltando”.
O homem retrucou: - “Namorada? Então, agora gosta de mulher? Que novidade é essa? Ela vai saber quem você é”.
O rapaz implorou: - “Por favor, não conte nada, te peço em nome dos velhos tempos”.
O homem continuou olhando pro rapaz, olhou pra mulher que já tinha voltado, e só deu tempo a ela de perguntar: - “Quem é você?”.
Foi quando o homem disse uma frase que nunca pensei ouvir, em toda minha vida de garçom:
- “Ele é o meu homem, e se não for meu, não será de mais ninguém.
Depois disso, olhou pro namorado da moça, tirou uma arma da cintura, escondida embaixo da blusa, e deu um tiro certeiro no coração do rapaz. . Em questão de segundos, o sangue se espalhou pela mesa do bar, se misturando às pequenas poças de cerveja, estupidamente gelada, da mesma marca que o senhor toma.

Conversa de Bar Portenho

Paulo Mauá

- Uma cerveja estupidamente gelada!

Enquanto o garçom se afasta, olho ao redor do bar quase vazio àquela hora. Respiro os tons tênues da madrugada que confundem minha vista. Não distingo as formas fixas das flutuantes entre os copos vazios. Sinto os pés firmes sobre o chão vacilante e a madeira sob meu corpo não é forte suficiente para o peso que carrego. A melodia não é a mesma de outrora, fruto da escolha, da distância, da solidão da alma.

Viajo no tempo e em um bar parecido, ela sai da toalete sorrindo, mexe nos cabelos, passa pelo balcão de bebidas e vem em minha direção com a assídua taça de vinho.

- É malbec ou syrah ?

Ela me responde com displicente encanto natural:
- E eu que sei? Só sei que quero tomar um vinho ao seu lado sem pressa. Faz tempo que...
- Faz tempo que não tomamos vinho?
- Não, Carlos, faz tempo que a pressa... deixa prá lá.

A década de 60 foi o símbolo das revoltas, cassetetes, perseguições a sonhos e esperanças. O sucesso da ousadia de Che Guevara, filho da província de Rosário e da classe média alta argentina, impulsionou uma geração de universitários a enfrentar ideais. Eu fui um deles. Ela também.

Conheci Mercedes após uma manifestação frente à Casa Rosada. Fugindo da polícia, tropecei nos arbustos da Plaza de Mayo, driblei pessoas e carros na Rua Rivadavia e me abriguei atrás do altar da Catedral Metropolitana. Um ateu como eu pedia a Deus que os incontáveis minutos de tensão acabassem logo. Percebi na penumbra que outro coração disparava no mesmo ritmo e no mesmo espaço. Uma jovem morena. A mesma que agora eu despacharia do meu futuro. Com o passar das reuniões clandestinas, me envolvi com grupos radicais e a morte recente de Ernesto me mostrava claramente que não poderia arrastá-la, conscientemente, para esse tipo de vida.

- Canta alguma coisa só pra mim. Canta?

Ela olha para o palco, vê o violão disponível e volta o rosto para mim.
- Só se você atender aos meus desejos.
- Mercedes, desejo que cante para mim. Para que eu nunca mais me esqueça da sua voz, da sua boca deliciosa. Vem cá, me dá um beijo.

Ah, vou sentir falta da seda desses cabelos fartos, véus negros emoldurando os olhos oferecidos. Sofrimento é estar ciente que o meu destino não poderia ser o mesmo que o dela.

- Carlos, onde você vai é um lugar...quer dizer... será que...

Não respondo. Mantenho-me atento. É um jogo de paciência. Ela sabe disso e logo corta o silêncio com precisão:

- Por que não posso ir com você? Ajudo no que for preciso. Mudo de nome, saio de casa com a roupa do corpo. Fiz um pacto comigo mesma que você seria meu companheiro para o resto da minha vida desde aquele momento da catedral. Não precisa casar comigo na igreja. Só quero ser feliz ao seu lado. Não posso desaprender a amar de um dia para o outro. Será que você me entende?

Não tive alternativa e apelei de vez:
- Você pararia de cantar por minha causa, Mercedes ?

Ela precisava escutar isso e continuei implacavelmente:
- Eu não consigo imaginar você parando de cantar por um ideal político. A música é sua essência e você canta para viver. Respira notas musicais, entrega o seu corpo ao ritmo. Assim é você. Eu só sei reclamar e esbravejar. Cada um de nós nasceu com um talento. Não quero carregar comigo a sensação amarga de que a moça mais bonita que conheci parou de cantar, e encantar, só para sonhar minha paranóia particular. Não faça isso comigo. Não faça isso consigo.

Achei que ela ia chorar, mas lutava com todas as forças e tentava me encurralar:
- Carlos, você define o destino das nossas vidas a uma escolha minha única: você ou a música?
- Você não tem que escolher nada. Eu escolho no seu lugar. Eu. Não torne as coisas mais difíceis.

O silêncio imperou e se tivesse ficado daquele jeito, talvez nossos rumos seriam outros.
- Agora, vai cantar aquela música que eu adoro. Solte a voz e me embriague o resto da noite. Eu fico aqui, sentado, comportado, guardando esse momento para o resto da minha vida. Proponho um brinde: gracias a la vida.

Pensei até que ela não ia corresponder, mas com coragem e voz embargada, brindou comigo pela última vez:
- Gracias a la vida.

Tomou o resto do vinho, colocou a taça vazia ao meu lado, baixou a cabeça e enxugou a lágrima discreta que corria por sua face redonda, com os próprios cabelos. Caminhou em direção ao palco, colocou a bolsa de pano ao lado do banco, ajustou o microfone, 1-2-3 testando, afinou o violão, fechou os olhos e lançou ao ar acordes vibrantes. O ambiente ganhou força mas ficou triste. Antes de acabar a musica, levantei e fui embora.

A militância ficou para trás em cartazes rasgados e cicatrizes no embate da teoria filosófica e a prática social.
Por diversas vezes, o infame espelho da manhã acusou-me de covarde travestido de terno cinza escuro. A vida esmagou, sem piedade, minhas fantasias e ilusões. Nunca mais sonhei meus sonhos. Nossos sonhos. Nossas vidas nunca mais se cruzaram. Nunca mais fiz amor como nas longas madrugadas estudantis e frias de Buenos Aires.
Cheguei a ir a um show dela há uns vinte anos atrás. Músicos tarimbados e melodias de cunho político envolventes. Na pausa entre os compassos marcados, meu coração inquieto gritava, em vão: eu te amo, eu te amo. A declaração de amor perdia-se nas arquibancadas lotadas de olhos atentos extasiados com a sua presença fascinante no palco. No fim do espetáculo, cheguei a me encaminhar para o camarim, mas desisti. Havia desistido de nós há muito tempo.
Hoje, sinto falta das nossas conversas de bar, o displicente som das cordas daquele violão, as mãos dadas nas passeatas, a correria, os sustos, as gargalhadas, os nossos gritos de ordem, a boca carnuda me sorvendo. Tudo ficou grudado na minha alma. Como el musguito en la pietra.

Alivio a gravata e chega mais uma cerveja. A discreta música ambiente desperta a minha mente: é a voz de Mercedes. Enquanto enche meu copo, o garçom fala sem pressa e sem pedir licença:
- O senhor sabia que ela chegou a se apresentar uma vez aqui? Foi uma noite fantástica. Quem viu, viu. Silêncio.
- O senhor quer mais alguma coisa?

Respondo que não com a cabeça.
Pausa.
Ele torna a me questionar:
- Deixo essa taça de vinho vazia aí mesmo ?

Não respondo.
Ele entende e sai, deixando-me apenas com a perpétua solidão do meu palco.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Prémio Literário Hernâni Cidade

Prémio Literário Hernâni Cidade
Modalidade: Conto

Tema: "Por favor, parem o Universo. Quero apear-me."


REGULAMENTO


1º - Podem concorrer a este prémio todas as pessoas que o desejem, desde que aceitem e cumpram o disposto neste regulamento.


2º - Na edição de 2009 a modalidade é: Conto

O tema é: "Por favor parem o Universo. Quero apear-me." (anónimo)

Elabore um texto a partir da citação.


3º - Cada participante só poderá concorrer com um único trabalho.


4º - Desse trabalho, que não deverá exceder três páginas, serão enviados cinco exemplares em papel formato A4, dactilografados, com espaço e meio de entrelinhamento e com caracteres de tamanho 12.


5º - O trabalho será subscrito com um pseudónimo e far-se-á acompanhar de um envelope fechado com a indicação exterior do pseudónimo e idade do concorrente. O envelope conterá obrigatoriamente a identificação do concorrente: nome completo, idade, morada com indicação do código postal e número telefónico para eventual contacto.


6º - O trabalho poderá ser entregue:

a) em mão na Biblioteca Municipal de Redondo

b) pelo correio para:

Biblioteca Municipal de Redondo

Prémio Literário Hernâni Cidade, 2009

Rua D. Arnilda e Eliezer Kamenezky, 43

7170-062 Redondo

c) por mail para premioliterariohernanicidade@gmail.com desde que seja enviado em anexo (Word) assinado com pseudónimo e a identificação do concorrente seja enviada no mesmo mail em segundo anexo e cumpra as restantes cláusulas do regulamento.


7º - O prazo de recepção dos trabalhos termina em 9 de Outubro de 2009, findo o qual se procederá à sua apreciação e classificação por um Júri composto por cinco elementos de reconhecida idoneidade, aos quais será vedada a participação no concurso, e de cujas decisões não haverá recurso.


8º - Serão atribuídos:

a) Três prémios: 1º, 2º e 3º - a que correspondem, respectivamente, as importâncias de 750, 375 e 250 Euros.

b) Menções honrosas a outros trabalhos que se distingam em número a definir pelo Júri.

c) Prémio Especial Juventude - para o qual só serão tidos em consideração os trabalhos dos concorrentes com idades compreendidas entre os 14 e os 20 anos inclusive.

d) Diplomas de participação a todos os concorrentes.


9º - O júri poderá não atribuir qualquer dos prémios desde que considere haver falta de qualidade nos trabalhos apresentados.


10º - Os concorrentes premiados serão antecipadamente avisados dos resultados do concurso, sendo os prémios entregues em cerimónia a realizar no dia 21 de Novembro (Sábado), pelas 16 horas, no auditório do Centro Cultural de Redondo.


11º - A entidade organizadora reserva-se o direito de utilizar os trabalhos recebidos, quer expondo-os publicamente, quer publicando-os na imprensa nacional ou regional ou ainda proceder à sua encenação e representação em tempo oportuno.

DICAS DE ESCRITORES DIVERSOS PARA ESCREVER MELHOR

É na vida que está a maior parte do material literário. As histórias estão bem próximas. Use a memória sem medo.

O que oferece o maior aprendizado para o escritor iniciante é a própria vida. Vá fundo e dê vazão às suas emoções pessoais.

Um escritor deve conhecer bem o seu ofício. Estude muito.

Carregue sempre caneta e papel no bolso - ou agenda eletrônica: anote tudo o que pensa e quer.

Leia muito, sem preconceitos: os clássicos e os contemporâneos, os brasileiros e os estrangeiros. Não deixe de ler o que você realmente gosta, na hora e no ritmo que quiser. E sempre guiado pelo prazer - quando a leitura parecer pura obrigação, esqueça.

Escreva regularmente e deixe os textos descansando. Volte a eles de tempos em tempos e os reescreva.

Não acredite no mito de que quanto mais louco você for e mais sofrimento tiver, melhor será sua literatura. Um escritor mediano com a cabeça no lugar tem mais chances do que um maluco.

Seu estilo é seu maior patrimônio. Ouça sua voz e seja fiel a ela. Não imite os escritores que você ama (nem os que você odeia).

Se você transita entre muitas linguagens (romance, conto, poesia, teatro, etc.), cuidado. No começo da carreira, é mais prudente escolher um caminho e aprofundar-se nele do que ficar pulando de galho em galho. Deixe a diversificação pra mais tarde.

A função da boa literatura não é entreter e deleitar, mas inquietar e provocar o leitor.

Oficinas literárias são boas experiências, mas é preciso saber tirar o melhor delas.

Em suas leituras, preste atenção a todo tipo de recurso narrativo que os outros escritores usam. Veja como mexem com estrutura, trama ou ausência de trama, construção ou não de personagens, ponto de vista narrativo, etc. ,

É útil saber o que os outros escritores pensam sobre seu ofício. Descubra o que eles dizem a respeito em entrevistas e depoimentos. Se possível, converse com muitos deles, mesmo que tenha de vencer uma natural tendência dos literatos para a introversão e o isolamento.

ESCREVENDO HISTÓRIAS DA CAROCHINHA

VIVIANE ALMEIDA
(Construção de crônica/ conto com a inserção das seguintes palavras: CARTUCHO, COTONETE, CAROCHINHA, CONFISSÃO)

Por que? Todos os dias me pergunto. Levanto, deito, ando entre um e outro... mas a pergunta não me larga. Espreita em todos os cantos. Tem coisas que nem a morte é capaz de apagar. Morte física ou psicológica. Não interessa, o cadáver continua em corpo presente.

Era um dia normal. Daqueles que existem em grande quantidade na vida de um ser humano, mediamente qualificado, mediamente informado. Vivido no médio.

Café tomado, passei na farmácia mais perto de casa para comprar um cartucho de cotonetes. Parecia que adivinhava que teria que ter meus ouvidos bem abertos. Reclamei do preço, respondi aos comentários de ocasião da fila. As pessoas adoram conversar em filas com pessoas que não conhecem. Acho que gostam de conversar com estranhos, uma espécie de “adultério mental”.

Minha mãe repetia inúmeras vezes: “Meu filho, não fale com estranhos”, “Meu filho, não aceite nada de ninguém”. Deve ser por isso que casei com a minha prima. Ela não era propriamente uma estranha e não era ninguém. Era linda, e minha prima.

Quando começamos a namorar, naturalmente escondido, fizemos muitas promessas e até pacto de sangue. Para falar a verdade, meio sangue, porque eu desmaiei na hora. Até hoje não suporto ver ou senti-lo. Minha mãe queria que eu fosse médico, mas a inabilidade com plasma e seus derivados foi um impeditivo. Gostava de histórias.

As da carochinha, as de reis e rainhas, principalmente as com um final feliz. Choro quando vejo filmes românticos e não consigo torcer para o bandido da história, apesar da simpatia de gênero pela masculinidade.

Marquei a data do meu casamento na véspera de Natal. Completáva-mos cinco anos de namoro. Família toda reunida. A minha família, a dela, ou para simplificar, a nossa. É a vantagem de casamento entre primos.


O casamento correu na tranqüilidade. Mães chorando, maquiagem escorrendo, dama de honra indisciplinada. Ela estava linda. Toda de branco. Pensei em desmaiar. Gosto de desmaiar. Acho que confere emoção à ocasião. E sempre há a desculpa da pressão e do calor. Era dezembro. Um ano depois do noivado. Rio de Janeiro. Nem as flores de laranjeira agüentaram.

Não desmaiei quando nosso primeiro filho nasceu. Uma menina. Guardei na gaveta o uniforme completo do Botafogo. “A culpa - disse um camarada meu - é da combinação”. Qual combinação? – perguntei eu. Ele respondeu - “do x e y”.

Ah! sexo de filho, então, agora é matemática. E eu que pensei que Deus tinha alguma coisa e ver com isso.

Comecei a me sentir diferente. Meio estranho. Não sabia explicar. Foi aos poucos. Como medicamento homeopático, mas esse acentuou os sintomas.

Sabe aquele sentimento, aquela angústia? Tentei várias vezes conversar com ela. A prima, que depois de todos esses anos parecia mais irmã - uma ligeira mudança na árvore genealógica da família.

Ela não queria ouvir. Andava envolvida com os cursos de meditação. Dizia que é para aprender o desapego. Aí pergunto, se era para desapegar, para que tanta ginástica, dermatologista, inglês e tudo o resto que nem sei do que se tratava. Estava começando a achar que o único apego para ela se livrar tem nome: o meu.

Nem isso ela quis. Preferiu manter o nome de solteira. Confesso que fiquei decepcionado, mas noiva pode tudo. Noivo só usa uma flor na lapela. Ela tem a igreja inteira.

Nem sei porque estou lembrando de tudo isso hoje. Faz tanto tempo. Deve ser porque abri a gaveta e encontrei o uniforme do Botafogo.

Estou tentando reunir os detalhes daquele dia, depois que comprei o cartucho de cotonetes e saí da farmácia.

Ainda está tudo muito confuso. Lembrei da minha mãe dizendo para não falar com estranhos. Falei com muitos estranhos na fila, naquele dia. Será por isso? Talvez, não. Ou será porque faltei na confissão antes do casamento? O Botafogo jogava no Maracanã. Tinha que ir. Fiz umas orações às pressas, pedi perdão pelo ato e pela omissão. A verdade é que o Botafogo perdeu.

Também sempre ouvi dizer que criança que não é batizada, não tem sorte na vida. Vira herege. Eu fui batizado, mas nunca soube de nenhum caso em que a que falta de confissão fosse responsável por isso.

Hoje já me perguntei, amanhã sei que vou voltar a perguntar. Não tenho pressa para descobrir o que foi que aconteceu.

Coisas de Criança

Coisas de criança
Paulo Mauá

Era uma vez a prefeitura, a praça da matriz com árvores copadas, o coreto, a escola com as crianças correndo no recreio, o pipoqueiro na esquina, a mercearia com as cores das frutas, o banco e o gerente de terno, as senhoras fofoqueiras nas janelas frente à calçada principal, o fazendeiro local e suas botas e todos os personagens de um conto da carochinha da singela vida naquela pequena cidade do interior.

O padre, de barriga avantajada e calvo, após a missa do final da tarde, começa a fechar lentamente as janelas da capela quando percebe que alguém está ajoelhado no confessionário. Parece uma criança. Pára o que está fazendo e desloca-se para o local onde o pecador mirim aguarda sua presença.

- Boa tarde, filho.
- Oi, padre Julião, é o Jorginho.
- Não precisa dizer o nome, tá bom ? Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Padre Julio estava acostumado com a informalidade na confissão inocente das crianças constantemente perseguidas pelo sentimento de culpa implantado pelas freiras do Instituto Liceu, o único colégio da cidade.

- Preciso confessar um pecado bem grande para o senhor, Pe. Julião. Um não, vários.
- Não consigo imaginar o seu coraçãozinho com tantos pecados, mas pode falar que estou aqui para ajudar você.
- Tenho mania de roubar coisas dos outros.
- Toda criança sempre pega alguma coisa aqui, ali. Isso é normal. Eu mesmo roubava galinhas do sítio vizinho para ter o que comer em casa. Mas me conta: o que você roubou ?
- Um monte de coisas: o canivete do seu Pacheco, o catavento do Paulinho, meu amigo da escola, a caixinha de cotonete do meu irmãozinho, o cachorro do guarda da estação, a coleira do cachorro dele, até a calcinha da tia Neca, calcinha não, calçona...
- Caramba... – exclamou o vigário tentando demonstrar surpresa e preocupação com os delitos do menino.
- Ah, tem a cesta de carambolas, caquis e cerejas da venda da dona Mirtes, a castanhola da Juanita, o cinzeiro da pensão Paiva, o cartucho da impressora da prefeitura, na verdade, os dois cartuchos, o colar da minha avó, o curió do seu...
- Tá bom, Jorginho. Já entendi.
- Entendeu nada, seu padre. Eu tenho essa vontade maluca que me queima o peito e eu vou pegando tudo. Tudo não: só pego coisas que começam com a letra C.
- Ahn... – exclamou o padre, agora realmente surpreso.
- Isso é normal ? Eu vou pro inferno ?
- Não sei se é normal, só sei que é pecado roubar coisas dos outros e você não vai pro inferno. Procure pensar em outras atividades que possam desviar a sua atenção dessa vontade incontrolável. Evite colocar as mãos nas coisas dos outros, qualquer coisa, começando com C, com B, não interessa a letra. O mais importante é você devolver tudo e se arrepender do que fez. Posso contar com você ?
- Pode sim. Quantas ave-marias tenho que rezar para ficar curado ?
- Reze 10 Ave-Marias, 5 Pai-Nossos e o ato de contrição ao final. Mas o mais importante é não fazer de novo e arrepender-se.
- Pode deixar. O senhor vai contar para alguém o que eu fiz ?
- De jeito nenhum, Jorginho. O que se comenta aqui, fica comigo e com Deus. Nem conte para os outros que eu roubava galinhas quando era criança, tá ?
- Puxa, estou muito contente. Estou aliviado. Deixa eu dar um abraço no senhor.

Antes que Padre Júlio pudesse responder, o menino levantou rapidamente do genuflexório e entrou no confessionário dando um abraço forte naquele senhor de batina. Ah, se todos os pecados do mundo se concentrassem nesses detalhes infantis.

Enquanto fechava o restante das janelas, o padre ainda ouviu os passos fortes e ligeiros do menino indo embora. Na penumbra foi deslocando-se até o pórtico da entrada da igreja e curiosamente não encontrou as chaves dos portões no bolso da batina. Onde foi parar o molho de chaves? Atônito, vasculhou o chão próximo, correu os olhos pelo corredor central, procurou, procurou e nada. De frente para o altar, reparou que mais alguma coisa iria fazer falta na celebração do dia seguinte.

Em casa, Jorginho abre seu baú de tesouros furtados, coloca as chaves do padre ao lado do coador de café da dona Rosinha do empório e contempla sua mais nova conquista como um troféu de ouro: o cálice da missa.