sábado, 21 de novembro de 2009

MADAME NORA: RUNAS E TAROT

Exercício coletivo

- Você prefere o jogo de uma ou três runas?
- Como assim?
- Se quiser jogar com três runas, teremos respostas para seu passado, presente e futuro

Não sabia bem se queria mesmo saber do futuro. Do passado não queria lembrar. E o presente era vivo demais. Mas resolveu:

- Vai mesmo o jogo com três...

A mulher deu inicio ao jogo. A ansiedade começou a tomar conta daquele homem. Viera depois de muitas hesitações e jurara jamais contar a ninguém sobre sua visita a uma vidente...

Pensou, isso é coisa de mulher. E por segundos quis ordenar a paragem do tempo e a leitura do futuro. Tarde demais, a primeira runa já estava sobre a mesa. Seguiram-se mais duas. A expressão daquela mulher correspondia às inscrições das pedras: era enigmática...

Continuava arrependido e relutante. Não sabia se deveria manter a postura cética ou ter nuances de esperança e tentar adivinhar as expressões no rosto daquela enigmática mulher.

A vidente ficou alguns instantes quieta, apreensiva, olhou-o nos olhos e disse preocupada:

- Sei não...
- O que?

- Posso falar? Estou vendo que algo de muito estranho vai acontecer. Tome muito cuidado com sua saúde.,

Não teve ouvidos para escutar mais nada. Uma dor aguda no peito, os olhos turvos, o corpo desabando pesado no chão. A uútima visão era a da esposa, excitada...

- Marquei uma hora pra você com Madame Nora. Você vai gostar das previsões dela...

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

“Bendito maldito”, a biografia de Plínio Marcos no Teatro Guarany

Nesta quinta-feira, 19 de novembro, quando se completam dez anos da morte de Plínio Marcos, a Prefeitura Municipal de Santos, pela sua Secretaria de Cultura, homenageia o dramaturgo com o lançamento do livro "Bendito maldito - Uma biografia de Plínio Marcos", com a presença do autor Oswaldo Mendes. O evento será no foyer do Teatro Guarany (Praça dos Andradas, 100), no Centro Histórico, a partir das 19h30.
*
“Quinhentas páginas de um livro híbrido que vibra nas mãos de quem o lê, tal a vertiginosidade dos fatos encadeados, pesquisados à exaustão, que nos revelam seis décadas da trajetória do cometa Plínio Marcos. Plínio Marcos, ele mesmo, o tempo todo, como se autodefiniu. A obra ciclópica de Oswaldo Mendes é dividida em atos e cenas como se espetáculo teatral fosse, eivada de flashbacks e zooms próprios do cinema, esclarecidos nos seus vaivéns pela rigorosa Linha do tempo que situa historicamente fatos e datas de mais de meio século. Oswaldo mergulha no cipoal de relatos, memórias e emoções com o ímpeto de um trem em movimento.”
Assim a crítica teatral Ilka Marinho Zanotto inicia o seu prefácio a Bendito maldito – Uma biografia de Plínio Marcos, de Oswaldo Mendes, que a Editora Leya acaba de lançar. A biografia chega à livrarias coincidindo com os 50 anos da estreia de Barrela, a primeira peça de Plínio Marcos, que em 1º de novembro de 1959 fez uma única apresentação em Santos, sendo proibida em seguida. Também coincide com os dez anos da morte do dramaturgo, em 19 de novembro de 1999. O título Bendito maldito foi sugerido pelo editor Quartim de Moraes, que há nove anos propôs a Oswaldo Mendes, com o apoio da família de Plínio, que escrevesse a biografia do amigo com quem conviveu desde 1969 no teatro e na imprensa.

“Adiei o mais que pude o trabalho porque não queria escrever movido pelo tributo à amizade”, diz Oswaldo Mendes. “Atendendo ao que o Plínio exigiria, eu não queria agir feito Poliana, oferecendo o retrato pacificado de uma personagem complexa e guerreira como ele. A vida de Plínio é uma grande narrativa dramática, que vai da política ao teatro passando pela música, o futebol, a repressão, a imprensa, o tarô, a televisão, a religiosidade. Daí a opção de dividi-la em três atos, com respectivas linhas do tempo, na esperança de ajudar o leitor, principalmente o das novas e futuras gerações, a seguir a trajetória do personagem e compreender as circunstâncias que determinaram a sua ação. Embora o título sugira uma contradição adjetiva, Bendito maldito, procurei substantivar a narrativa, cúmplice do próprio Plínio que pedia para não lhe pregarem rótulos.”

OSWALDO MENDES
Nascido em Marília (SP) em 19 de setembro de 1946, atua no teatro e na imprensa de São Paulo desde 1969. Ator, diretor e dramaturgo, formou-se pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo. Jornalista de 1969 a 1992, dirigiu o jornal Última Hora (SP), foi editor do suplemento Folhetim e sub-secretário de redação da Folha de S. Paulo, editor de Cultura da revista Visão e foi um dos fundadores da Associação Paulista de Críticos de Arte, APCA. Livros publicados: Getúlio Vargas, uma biografia (Editora Moderna, 1984), Ademar Guerra: O teatro de um homem só (Editora Senac, 1997), indicado para o prêmio Shell, e Teatro e Circunstância (Editora Núcleo, 2005), que reúne três de suas peças já encenadas – Um tiro no coração (1984), Voltaire – Deus me livre e guarde (1998, prêmio Mambembe da Funarte) e A dança do universo (2005). Autor de ensaios biográficos de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque e Ayrton Senna, e da história da Bossa Nova, para a coleção Anotações com Arte.
Como ator estreou em Missa Leiga de Chico de Assis, direção de Ademar Guerra, em 1972, e integra desde 2001 a companhia Arte Ciência no Palco - www.arteciencianopalco.com.br - onde atuou nas peças Copenhagen, A dança do universo, E agora, sr. Feynman?, Quebrando códigos, After Darwn, Oxigênio e Perdida – Uma comédia quântica, pela qual foi indicado ao prêmio Shell de melhor ator em 2002. Dirigiu, entre outros espetáculos: Brecht Segundo Brecht com Armando Bogus, São Paulo Brasil com César Camargo Mariano, Essa mulher com Elis Regina, Sinal de vida de Lauro César Muniz com Antonio Fagundes e Francisco Milani e Natal na praça com Etty Fraser.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O ÚLTIMO DRINK

Paulo Mauá

Sob o clima quente caribenho, Perez não se queixa do calor, sozinho em uma das mesas externas do Tropicana´s Bar, em plena Avenida Malecon, ponto de encontro de turistas e moradores de Havana.
Mesmo com o terno cinza e a gravata de linho em forma de serpente cruel em qualquer pescoço latino-americano, o que mais o incomoda é a missão daquela manhã. É o primeiro dia de janeiro de 1959 e com o sono atrasado devido à festa de final de ano, aguarda ser abordado por um estranho em mais uma incumbência oficiosa do seu serviço perigoso.
Ser agente secreto traz características excitantes e românticas, baseadas nos roteiros de cinema, mas não passa de fonte inesgotável de insegurança pessoal por não poder confiar em ninguém. Ser espião é ter o dom de transformar labuta em fel entre festas, trincheiras, mentiras e disfarces.
- Garçonete, mais um daiquiri, por favor.
A expectativa do encontro com o informante dos guerrilheiros escondidos nas florestas de Sierra Madre faz com que o corpo multiplique o suor na testa de Perez em gotas persistentes. E não são nem 11 horas da manhã.
A atendente, em inglês de péssima pronúncia em contrapartida à sua estonteante beleza trigueira, deixa o daiquiri à sua frente, além do sorriso branco imenso em troca da gorjeta. O dólar sai do paletó rapidamente. Ele olha para o copo e já pede outro. Aquele drink não daria nem para o começo. Ela some dentro do bar como num passe de mágica.
Ser cubano e compartilhar as idéias do perpétuo ditador Fulgêncio Batista, desde a década de 40 no cargo através de diversos golpes de estado, é viver no fio da navalha. A prostituição, a corrupção e as negociatas com os Estados Unidos caracterizaram o presidente como inimigo número um do povo. Os poderosos fizeram de Cuba o quintal do perverso capitalismo e um país fragilizado. Pior que isso, é ser agente duplo no complicado trânsito de informações secretas do governo e dos rebeldes. Perez estava cansado de viver assim.
O sol, forte e poderoso avança no céu, içando a angústia da espera.
De repente, um vulto na cadeira ao lado, disfarçado sob um chapéu de palha de aba larga. Não é possível descobrir se é cubano, ianque, jovem ou velho, até mesmo homem ou mulher.
Tenta olhar o rosto do recém-chegado denotando discrição, mas lembra do objetivo da missão: trocar as palavras-chave, pegar o envelope e partir de imediato, sem riscos tangíveis.
A primeira senha é dele. Arrisca as palavras em um fôlego só:
- Cuando calienta el sol, hasta la playa.
A resposta vem em forma de perguntas curtas:
- Te gusta Lola ? Te gusta Carmen ?
A voz é forçada. Um som feminino rouco simulando o sexo oposto.
Ele continua com as senhas de segurança:
- Me gustan todas. Ô, como me gustan, ô, ô, ô.
O contato responde implacável:
- Ai caramba, madrecita.
Pronto. O reconhecimento está feito e a transação precisa ser finalizada. O envelope pardo troca de mãos. Perez, aliviado, esvazia o copo em um único gole e lembra da formosa garçonete. Será que ela demora com o segundo daiquiri?
Repara que o vulto de chapéu nada discreto permanece ao seu lado. Isso não estava previsto.
A voz quase conhecida, agora totalmente solta e sensual, convida-o:
- Toma um mojito comigo ?

Que senha nova é aquela? Perez descobre no perfil revelado a garçonete sumida. Ela é o contato da missão quase suicida. A agradável surpresa suscita a dúvida para um profissional tarimbado como ele: e se for uma isca? Começa a suar de verdade enquanto a beleza indiscutível da morena cinge suas veias. A razão, senhora absoluta nos momentos instáveis, esvai-se entre os capítulos de regras que reza a cartilha de espionagem mundial.
- Você quer ou não quer o meu mojito, Perez ?
Ele hesita um pouco, cai na real e olha para os lados, preocupado com os transeuntes. Resignado, aceita com um sinal de cabeça mas pergunta em seguida:
- Mas quem vai servir a gente, Rúbia, se está dando o inusitado prazer de estar ao meu lado nesse momento? Até quando você poderá permanecer comigo? Na verdade, o que me aflige é a incerteza de como vamos viver a partir de agora...Neste momento, o nosso traiçoeiro presidente Batista foge para os Estados Unidos, com as malas cheias de dólar. Fidel e seus companheiros estão tomando Havana por uma Cuba melhor. E nós? O que vamos fazer?
- Perez, querido, somos responsáveis pelos nossos destinos. Não pretendo me esconder mais. Quero ser abraçada do amanhecer ao por do sol. Mas preciso dos seus braços junto a mim. Se vou largar minhas aflições, quero que abandone as suas preocupações também. Viva mais. Solte-se no ritmo da alma. Quero bailar contigo o ano inteiro, a vida toda.

Final 1

Os olhos dele revelam a emoção e o peito não se contem:
- Você tem razão. Me ensine o mambo.
Perez se aproxima de Rúbia para o primeiro beijo público de suas vidas. Antes que os lábios se toquem, um estampido de rifle AK-47 anuncia a trajetória da bala, vinda da janela do 3º andar do prédio em frente ao Tropicana´s Bar. O belo rosto da mulher bate inerte contra a mesa. Antes que ele a socorra ou descubra de que lado veio o inoportuno golpe, outro estampido da arma russa se faz ouvir entre os gritos na multidão.

Final 2

Os olhos dele revelam a emoção e o peito não se contem:
- Você tem razão. Me ensine o mambo.
O envelope abandonado sob a mesa é pisoteado pelas botas dos homens liderados por Guevara. Por instantes, o ritmo da bela ilha caribenha mistura doses calientes de democracia e utopia. A praia de Varadero testemunha ao longe as pegadas soltas de Rúbia e Perez revolucionadas para sempre a partir de uma manhã de ano novo.

O ESCONDERIJO DA ALMA

Exercício coletivo

Acordou cedo, dirigiu centenas de quilômetros, mochila nas costas, água, barras de cereal, luvas, capacete, disposição e desprendimento. Sentada ali, à porta da caverna, o silêncio total era o antídoto dos males urbanos deixados à distância.
Distância era modo de dizer, pois ela fugira para esse local com intuito de se esconder, de parar de pensar no que a atormentava. Tinha tentado outras formas de cura nesses três meses de agonia. Horas extras no trabalho, muitas taças do vinho preferido, um novo guarda-roupa. Em vão.
Pensava na solidão como terapia. Respirou fundo e começou a entrar na caverna. A cada passo, a escuridão aumentava como se estivesse em seu próprio interior, negro, gélido. Mas uma paz ainda desconhecida começou a invadi-la. O silencio e a solidão pareciam grandes companheiros, os únicos que a compreendiam.
Levava na mochila “A Caverna” de Platão. Precisava lidar com suas sombras e medos. Mas ali, naquela caverna, sentia a falta da luz. Estava entregue a si mesma. Era isto que procurava, o derradeiro encontro a partir do qual daria o grande salto.
Caminhou para o infinito breu até a água terminar, a bússola quebrar e sob a luz artificial, sentou e leu o livro, até a bateria acabar.
E foi assim que ela nunca mais saiu de lá.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

SOLIDÃO

Antonio Taveira

Nunca ouvi um Bom dia! Boa tarde! Ou Boa noite! Tinha sempre uma frase, uma história, um acontecimento.
─ Olá Mário, bom dia.
─ Rapaz, tava até agora na Receita Federal, só atendem quinta-feira, tenho que chegar às sete horas e pegar uma senha, depois esperar até ser atendido.
Se estava chovendo, falava da chuva; se estava sol, era o motivo do papo. Por mais cedo que chegasse ao prédio, a porta de ferro já estava aberta ─ O Mário já chegou! Encontrava-o conversando com o senhor da banca. No bar da esquina, tomava uma cervejinha no final do dia. Mas não era exclusivo deste. Variava sempre, cada hora em algum barzinho diferente, sempre sorrindo e contando “causos” e jogando conversa fora. Mas o bar não era seu cotidiano não. Conversava com o Chico do açougue, com o Zé do laticínio, com os motoristas de táxi do ponto da Senador. Era eclético, falava com todo mundo e sobre qualquer assunto. O sorriso fácil sempre estava em seu rosto. Seu escritório de contabilidade, imagino, lhe permitia uma vida financeira tranqüila complementando a aposentadoria. Por isso, quando o vizinho me mostrou o obituário, não acreditei:

─ O Mário não! Não pode ser. Uma pessoa como ele não poderia tomar uma atitude desta.
─ Parece que ele havia tentado antes. Depois da separação, ficou muito sozinho, os filhos, tinha um casal, não o procuraram mais. Proibiram-no até de ver o neto, companheiro para o jogos do Jabaquara e Portuguesinha. Eu o via trazendo uma quentinha para comer só, no escritório. Apesar de falante, sorridente, conversando com muita gente, era uma pessoa triste. Na hora do acidente, o maquinista até o viu, mas parar uma locomotiva em movimento não é uma tarefa de poucos metros.
Até hoje custo a acreditar, mas a solidão é um sentimento poderoso que leva as pessoas a cometer atos insanos como este do Mário.

UMA REUNIÃO DO COMITÊ

Antonio Taveira

− Todo mundo recebeu a ata da última reunião?
Sim geral.
− O dinheiro do mês passado foi todo praquele menino da cadeira de rodas. Como não podemos dar dinheiro para pessoa física, conforme nosso estatuto, doamos através da entidade do Serrinha.
– Alguém tem notícias da Mariana filha da Célia?
− Ela ficou dois dias na UTI, mas já está bem e em casa.
– Todas vão ao baile de aniversário né?
Alguns sins.
− Nós não poderíamos...
− A verba deste mês, o que faremos com ela?
− A Sonia Costa lá da Oficina do Futuro perguntou das camisetas, é pro Natal não é?
– A reunião da Cassi vai ser aqui ou lá no escritório deles?
− Tem pouca gente indo, acho que vai ser lá!
− Só se for com o dinheiro de dezembro, por que o de novembro usaremos na festa das crianças.
− Acho que...
− A Casa Caio pediu ajuda para alimentos.
− O Lar dos Velhinhos tinha pedido fraldão e alguns remédios, tentei até com um médico amigo meu umas amostras grátis.
− Eu poderia ver com a Sonia...
− Não esqueçam o almoço da Associação dos Aposentados vai ser lá na sede da Cantareira, temos ônibus de graça. Vamos levar uma turma grande.
− Não é no mesmo dia da festa das crianças?
− Por falar em festa, a Juíza respondeu o ofício.
− Ela conseguiu alguma coisa?
− Sim, ela conseguiu patrocínio para os sanduíches, o bolo e as bebidas.
− Eu consegui...
− Célia, você fala com a mulher do algodão doce e da pipoca?
− Quando nós vamos comprar os brinquedos? Isabel, nós vamos com o seu carro que é bem maior, não?
− Sim. A gente podia ir no dia 15, quarta feira.
– Sueli, vamos fazer uma dupla pro campeonato de tranca?
− Eu já me inscrevi com a Rosa.
− Esse ano nós...
− A Jaci conseguiu falar com aquela mulher da entidade da Zona Noroeste?
− Sandra, nós já estamos no assunto da festa.
− Tá bom, desculpe.
− Vamos falar com o pessoal do Sonho de Criança, prá saber que apresentação eles vão fazer.
− Rosana, tu fala com o professor de Dança de Rua, eles são tão bons...
− Eu já havia comentado com ele, só está aguardando a confirmação da data.
− Então está tudo acertado! Vamos combinar durante a semana da festa a que horas vamos chegar para decorar a quadra.
− Toninho, você não quer falar nada?
− Sim, é um prazer muito grande fazer parte deste comitê como único homem no meio desta turma de mulheres. Eu tentei falar cinco vezes...
− Nossa, já é tarde, tenho que ir embora.
− Eu também, Célia me dá uma carona?
− Tchau meninas, a gente se vê na festa.
− Tchau...
− Tchau...
− Tchau...

COMEMORAÇÃO

Exercício coletivo

- Então, você vem ou não vem? Do outro lado da linha, uma pausa indefinida no tempo. Fiquei sem graça de perguntar mais uma vez e aguardei a resposta.
- Vou sim, pode me aguardar. E mantenha uma garrafa de champanhe no gelo. Temos mesmo o que comemorar.

A comemoração para atingir a plenitude como resultado satisfatório precisa ser boa para ambos.

- Você acha que realmente temos que comemorar?
- Eu acho!.
- Você sempre foi assim. Egoísta, individualista...
- Mas, agora, não sou mais assim, meu bem. Depois que te conheci, mudei muito, amadureci.
- Bem, isso é verdade. Mas ainda falta bastante pra ficar como eu gosto.
- Você nunca está contente!!!.
- Não é assim. Eu só quero atenção, atenção de olhar pra mim quando falo. Carinho, carinho de um beijo inesperado, um olhar afetuoso, uma rosa de vez em quando. Você acha que isso é ser muito exigente?
- E brindar aos nossos encontros e desencontros não conta? Uma vida inteira juntos, e a que preço...
- Você às vezes é gozado. Quando diz que eu ainda não sou como você gostaria me agride. Fica muito pouco para comemorar com esse jeito machista.
- Então não há o que comemorar?
- Para de brincadeirinha boba. Ninguém está brincando aqui.

Era o nosso jogo privado. Todo ano, na data do nosso aniversário de casamento, armávamos uma discussão para depois fazer as pazes. Com champanhe.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

ANTOLOGIA

ANTOLOGIA

Até 15 de janeiro de 2010, a Andross Editora estará selecionando contos para a coletânea TRATADO SECRETO DE MAGIA, a ser lançada em abril de 2010 na Biblioteca de Literatura Fantástica Viriato Correa, em São Paulo. Os contos que interessam são aqueles relacionados não só à magia, mas também feitiçaria e bruxaria, desde histórias que remetam à realidade histórica, como a Inquisição, até tramas que sejam ligadas à fantasia, no estilo Harry Potter.

Qualquer pessoa pode enviar um texto para avaliação e possível publicação, basta que siga o regulamento de envio da obra, que está no website da editora: www.andross.com.br

A organização da antologia está a cargo da escritora de literatura fantástica Helena Gomes, autora da saga A Caverna de Cristais e de vários outros livros relacionados ao gênero fantástico.

Além desta, a Andross ainda tem outras sete antologias com inscrições abertas para o envio de textos. São elas:


· ECOS DA ALMA - ANTOLOGIA DE POEMAS
· MOEDAS PARA O BARQUEIRO - CONTOS FANTÁSTICOS SOBRE A MORTE
· ELAS ESCREVEM...CONTOS, CRÔNICAS E POEMAS SÓ DE ESCRITORAS
· UNIVERSO PAULISTANO VOL. II - CONTOS CRÔNICAS E POEMAS DE UMA CIDADE QUE NUNCA DORME
· HISTÓRIAS LILIPUTIANAS - ANTOLOGIA DE MICROCONTOS
· MARCAS NA PAREDE- CONTOS SOBRENATURAIS, DE SUSPENSE E DE TERROR
· 2054- CONTOS FUTURISTAS

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A Super Reunião

Paulo Mauá

- Desculpa o atraso. Perdi alguma coisa ?
- Eles ainda nem começaram.
- Vou sentar aqui ao seu ladinho. Oooooopa. O que é isso ?
- Sentou em cima do Homem Invisível.
- Mil perdões. Invisível mas forte, hem?
- Pára com essa baixaria e senta logo.
- O que eles estão esperando? Vamos começar, pessoal?
- Fica quieto. Chega atrasado e grita com todo mundo? Coisa feia.
- Feia é a Batgirl acordando de manhã, menino prodígio.
- Feio é vir com essa roupa ridícula. Não tinha outra coisa pra vestir?
- Não deu tempo. Vim direto de Gotham City. Por falar nisso, o comissário Gordon mandou um abraço super apertado e adorou a dica do batom gloss. E você? Não tem espelho no quarto? Sua roupinha vermelha e capa amarela-ouro me lembra premio hors-concours de desfile de carnaval no Hotel Glória do Rio de Janeiro. Categoria originalidade. Só não sei determinar se feminina ou masculina. Pelo menos a minha roupa é cinza-sóbrio.
- Pedi para o Alfred fazer outra mais discreta, mas ele não achou a helanca na cor azul na 25 de março.
- Helanca? Isso não existe mais. Agora é lycra, Robin.
- Você sabe que não posso usar lycra. Me pinica todo e fico com assadura. Depois não consigo sentar direito.
- Helanca é da época do Robin, não você, o Hood. Por falar nisso, ele já chegou? O Frei Tuck ficou de me trazer um galão de vinho do padre.
- Eles sumiram depois que foram morar no Heroes Resort Spa de Águas de São Pedro, junto com o Capitão América, o Arqueiro Verde e o Pimpinela Escarlate.
- Pimpinela o que, Robin ?
- Deixa pra lá. Quem deixou um abraço foi o The Flash. Veio pra reunião, assinou a lista de presença e saiu rapidinho.
- Ei. Criança aqui não pode. Sai, Ben10. Vai brincar com as Superpoderosas no parquinho infantil.
- Acho que eles vão começar. Qual é o primeiro item da pauta?
- Regularização do horário de alimentação do estábulo pelos funcionários terceirizados do prédio. Quem é o tonto que tem cavalo aqui no condomínio?
- Santo estrume seco, Batman. Esqueceu do Zorro e do Fantasma? E por falar no Fantasma, adoro o colant púrpura dele...
- Será que é de helanca, Robin? Desculpa, é uma brincadeirinha. Quando chegar o item da recreação, vou reclamar. A idéia de colocar o desaquecedor-hipertérmico-nuclear-ultra na piscina foi do Aquaman ?
- Não. Foi do Pingüim, aquele tratante. Não dá certo super-herói morar junto com vilão no mesmo edifício.
- Não aponta que ele cismou com você na reunião passada.
- To andando e andando pra ele e pro vizinho dele, o de terno verde cheio de ponto de interrogação. O cara só fala em charadas e atrapalha todo o andamento da reunião.
- O de cabelo verde e sorriso escancarado que está ao lado deles me ligou ontem no batfone querendo me convencer a forrar as mesas do salão de jogos. Todo mundo só quer gastar.
- Santa Dama de Copas, Batman. Nunca mais sento à mesa de carteado com esse cara. Sábado passado, no torneio de buraco, o cidadão tirou coringa de tudo quanto é manga da camisa e bateu. Nem deu tempo de pegar o morto. Foi uma roubalheira, quebraram o maior pau. Você não soube da confusão que deu?
- Não. Eu estava na sauna.
- A sauna não estava em manutenção?
- Levei o Tocha Humana junto. Esse item que condômino não pode deixar seus pertences na área comum é pertinente. Quase passei em cima da prancha do Surfista Prateado com a batmoto na semana passada.
- E a clava esquecida no elevador de serviço? O MightTor põe a culpa nos Herculóides e vice-versa. E ninguém resolve, pois a clava continua lá, subindo, descendo, passeando de elevador.
- Uau, Robin !!! Quem é aquela dona gostosa de couro preto e chicotinho na mão? Que gata !!!
- É a prima da moradora do 122.
- Aquela maravilha de mulher? Um dia ainda pego uma das duas na escadaria e faço o serviço completo.
- Santa apelação, Batman. Por acaso você é chegado?
- Quieto, Robin. Chegou o síndico.
- Será que ele acha que cuecona vermelha por cima do uniforme azul é fashion ?
- E o cara ainda se sente homem vestido assim, é mole?
- Homem, não. Se sente super-homem. E é um baita homem...ainda por cima, voa.
- Rooooooooooobin. Mantenha-se. Porque você não aproveita e pergunta onde ele comprou a helanca do uniforme dele? Desculpe, não resisti...
- Espero que ele não saia voando pela janela como na reunião passada quando jogaram kriptonita na mesa e a discussão esquentou.
- Ele sempre está quente. Sacou ?? Clark Kent.
- Santa apelação, Batman !!! Estão acabando com a coitada da faxineira dizendo que ela não dá conta do recado.
- Também, com o zelador enchendo diariamente os tetos do hall de entrada com teia de aranha, ninguém consegue dar conta da limpeza. Já fecharam o orçamento para trocar o portão de acesso das garagens e refazer o muro?
- Já. Com o Demolidor.
- Mas esclareceram porque amanheceu quebrado daquele jeito?
- O Homem de Ferro chegou de porre de madrugada. Beber e dirigir dá nisso. O que o Homem Elástico acabou de perguntar?
- Se eu sabia do Homem Fluído. Dei dez reais pra ele dar uma lavadinha no batmóvel que está na garagem do subsolo.
- Santa explosão de raiva, Batman. Porque aquele cara está ficando nervoso e verde? Rasgou a camisa inteira !!!
- Acho que ele acabou de descobrir que o fundo de reserva vai dobrar na próxima prestação para a compra dos enfeites de Natal.
- O Wolverine acabou de rasgar a convenção do condomínio em picadinhos.
- Sei não, Robin, desse jeito não vamos chegar aos assuntos gerais. Que balbúrdia !!! Acho melhor a gente voltar a morar na nossa batcaverna.

BALBÚRDIA

Thays Morales


- Bom dia, bom dia, good morning!!!
- Oi tia!
- Oi Querida!
- Abram as janelas, toda vez tenho que mandar?
- Tia?
- Que foi?
- O Pedro me bateu!
- Por que?
- Não tia, ela me provocou. Ela começou.
- Bem, não quero saber quem começou, peçam desculpas um pro outro.
- Desculpa.
- Desculpa
- Falem mais baixo, não consigo ouvir a menina aqui. Que bagunça!!
- Tia fiz pra você.
- Tia, ele me xingou.
- Xingou?
- Disse que sou burra.
- Ignora! Que é mentira.
- Mentira nada, tia. Ela é burra mesmo.
- Que coisa feia. Pede desculpas.
- Tia, a senhora ta tão linda hoje.
- Obrigada. Você é uma graça. Mas seus colegas, a maioria só sabe fazer- bagunça.
- Eu não faço bagunça, tia.
- Eu sei! Alguns fazem. Você não.
- Menino, para de jogar bola na classe. Vai acabar se machucando. Você ta surdo?
- Deixa eu jogar tia, só um pouquinho.
- Não pode. Aqui não.
- Tia posso beber água?
- Tia posso ir no banheiro?
- Pode. Não, não pode. Volta aqui, menina. Não deixei sair. Um de cada vez. Todo mundo sentado, não agüento mais essa balbúrdia!!!
- Credo, o que isso tia? Que palavra esquisita.
- Isso é o que vocês sabem fazer muito bem. Só isso.

domingo, 8 de novembro de 2009

DICAS

Certo: Nunca o vi... Nunca as convidei....
Errado: Nunca lhe vi...

Certo: Chegou a São Paulo
Ela vai ao cinema
O pai levou as crianças ao teatro.
Obs. Verbos de movimento exigem a e não em.

Certo: Onde vou ou Aonde vou?
Obs. Pode-se usar as duas formas

Despercebido = que não foi notado
Ex: um fato passou despercebido

Desapercebido= desprovido, desprevenido
Ex: Eu estava desapercebido de dinheiro

Sanar= corrigir
Sanear = recuperar, tornar habitável

Infligir= aplicar
Infringir= violar

Fluir= proceder, escorrer
Fruir= aproveitar

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

CANTIGA DE MENINA

Barbara Fernandes Ferreira

Nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante.
Sentada à janela de seu quarto, começando a sentir os primeiros sinais de sonolência, a menina meditava sobre a frase que lhe fora sorteada naquela manhã, durante a aula de língua portuguesa. Esse era o momento mais aguardado por ela ao longo de toda a semana: o professor, pouco antes do término da aula, escolhia cinco alunos para escreverem textos baseados em um tema proposto por ele; daquela vez, a jovem estudante estava entre os que tinham de redigir um texto baseado na frase sobre a qual ela tão atentamente refletia. O dia inteiro havia sido dedicado a desenvolver o tema, que a ela parecia mágico e suscitava em sua mente uma série de idéias, todas descartadas até então.
Como o relógio estivesse próximo da meia-noite, o cansaço começava a vir e era hora de preparar-se para dormir. Embora contrafeita por não haver conseguido ao menos elaborar um esboço para o texto, a menina deitou-se na cama e decidiu pensar sobre o assunto até que o sono a vencesse. A mãe veio dar-lhe boa noite e fazer as recomendações para que dormisse bem. Sempre obediente a essas ordens, a jovem somente pediu que a janela permanecesse aberta, pois assim poderia dormir sob a imagem do céu estrelado e sentir a brisa fresca que vinha de fora. A mãe aquiesceu com um misto de orgulho pela inteligência e sensibilidade da filha, e preocupação, pois intimamente temia a personalidade reservada e alheia da menina. Novamente a sós, a jovem fixou o quadro de natureza que se desenhava diante de seus olhos.
Em dado momento, porém, um fato insólito perturbou a placidez de suas meditações. Um pássaro, de singela coloração amarelada, atravessara a janela e revoara pelo quarto, até finalmente pousar-lhe no regaço, acomodando-se como se estivesse no próprio ninho. Apesar da surpresa, a menina não esboçou nenhum gesto de defesa; manteve apenas os olhos fixos no animal com um olhar que denunciava a curiosidade por entender a razão de semelhante visita. Após retribuir-lhe o olhar, o pássaro começou a entoar uma melodia melancólica, estranha aos ouvidos da menina, mas dotada de uma beleza com a qual ela não conseguia estabelecer comparação dentre as músicas que conhecia. Nenhum instrumento emitia aquele som singular, e nenhum compositor tivera a felicidade de compor aquela sequencia harmoniosa de sons. A ela parecia que o animal lhe contava sua história de vida; parecia cantar que saíra do ninho em busca de um lugar seguro enquanto perdurasse a cheia, pois nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante em que estava construído seu lar. Quando a maré baixava, ele voltava e reconstruía tudo o que fosse preciso para conservar o mesmo aspecto que apresentava o ninho quando a mesma água tragara consigo a passarinha sua companheira. Assim que a maré descesse, ainda cantava ele, haveria de tornar a procurá-la e, se não a encontrasse, continuaria o trabalho de recompor o ninho, até que a próxima enchente viesse e ele buscasse outro regaço de menina embebida na noite. Chegando aos acordes finais, o animal emitiu o que pareceu um lamento e, como se tivesse cumprido um dever, voou para fora, perdendo-se na noite.
A menina teve certa dificuldade em acordar na manhã do dia seguinte. Mas, tão logo recobrou a consciência, o acontecimento da noite anterior assomou-lhe à mente. Nem bem havia coordenado os primeiros pensamentos e a mãe abriu a porta do quarto, impelida pela demora da filha, que surpreendeu ainda de pijama. Com um olhar de sutil reprovação, a mãe ordenou-lhe que se aprontasse depressa, pois senão chegaria atrasada à escola. Assim que ficou novamente sozinha, a menina dirigiu o olhar para a janela, porém, para sua surpresa, ela estava praticamente fechada, com um estreito vão para passar um pouco de ar, conforme a mãe costumava fazer a fim de proteger a filha do sereno da noite sem que o quarto perdesse a ventilação.
Sonho ou realidade? O pássaro atravessaria a abertura mínima da janela? A menina pedia que não tivesse sido tão-somente um sonho. Novamente a mãe veio chamá-la e ela não quis perguntar sobre a janela. Preferiu manter a sensação de fantasia com a qual havia acordado. E ponderou que, após aquela noite, seu texto já estava pronto, bastava-lhe colocá-lo no papel. No caminho para a escola, ela não via as ruas: sua imaginação estava distante em busca do pássaro que as impressões da infância ainda recente moldaram-lhe na mente virgem das atribulações da vida.

CONVERSA DE BAR

Barbara Fernandes Ferreira

- Uma cerveja estupidamente gelada...
Enquanto o garçom se afasta para atender o meu pedido, olho ao redor do bar quase vazio àquela hora. Além de mim, apenas os empregados do bar. Mas é melhor assim, meu anonimato está garantido. Não quero conversa, nem brincadeira, nem mesmo bebedeira. Um pouco de solidão, só isso.
O rapaz relanceou o olhar pelo bar e, na sua angústia, deu um longo suspiro, enterrando a cabeça nas mãos. Não conseguia atinar com nenhum outro lugar onde pudesse ficar assim, tão concentrado em si, sem ninguém para lhe perguntar porquês ou mesmo oferecer-se para auxiliá-lo. Queria apenas remoer todos os fatos, desde o princípio, e questionar-se, ainda mais uma vez: “Em que ponto eu errei?”.
Os garçons, já habituados a ver entrarem no bar clientes em estados emocionais pouco equilibrados, não se abalaram pela presença do rapaz; apenas, como era costume, passaram a observá-lo sorrateiramente, a fim de evitar qualquer situação constrangedora, comum em casos como aquele aparentava ser. No entanto, o jovem não pretendia se expor e o garçom teve que tomar a iniciativa de perguntar qual seria seu pedido, visto que o rapaz tardava em fazê-lo. Cada vez mais fechado, ele murmurou a última frase que o empregado do bar lhe dissera em tom de gracejo, como se mesmo ali houvesse alguém disposto a tentar socorrê-lo: - Uma cerveja estupidamente gelada... E teve um riso nervoso. Mergulhou novamente nos próprios pensamentos, como se fosse realmente impossível lembrar-se de alguém que não ele mesmo e mais outras duas pessoas, cuja recordação lhe inspirava os mais baixos sentimentos.
Que sensação! É como sentir a vida murchar, ficar ressequida, morrer. Antes, nada estava como está agora. Mudou, mudou tudo! E tão de repente... Quando realmente dei por mim, já estava envolvido nesse turbilhão de acontecimentos. E nada mais será como era há pouco tempo atrás... Talvez fosse melhor não ter querido subir tão alto para não sentir tão vertiginosa a queda. Um emprego conquistado, um casamento feliz, que ainda respirava seus anos mais verdes... Mas de um e de outro sairiam meus dois traidores... Como é possível? Perdi muito, muito; se pudesse, gritaria isso para o mundo, ordenaria que a justiça fosse feita para aqueles dois que construíram a felicidade em cima da minha desgraça, dentro da minha própria casa! Isso chega a me causar até uma pressão no peito, acho que vou passar mal. Melhor parar um pouco. Calma, o tempo da vingança virá. Não dizem que é um prato que se come frio? Pois é, quando menos esperarem, vou fazê-los pagar por tudo, sem dó nenhuma. Não tiveram dó de mim, não vou ter dó deles.
Ah! Agora não sou só eu aqui, acabou de entrar uma moça. Que será que ela quer? Pediu uma cerveja, sentou sozinha, está um pouco cambaleante. O que terá acontecido? Está bem vestida, penteada, maquiada. Provavelmente trabalha fora e tem de estar apresentável. Como desconfiei, está nervosa sim. De onde estou ela conseguiria me ver, mas está absorta demais em seus pensamentos para notar em mim. A respiração dela está um pouco ofegante, os gestos inquietos, mas sobretudo os olhos revelam tudo. Ela volveu o olhar pelo bar e pelas poucas pessoas aqui presentes, mas parece que não viu nada nem ninguém. Está ensimesmada. Que terá acontecido?
Se alguém olhasse para mim, adivinharia o que estou passando? Estamos no mesmo estado? E ela? Terá sido a morte de alguém ou alguma traição sórdida? Parece que vai começar a chorar baixinho. E se eu fosse até lá? Sentaria ao lado dela e diria: por favor, moça, ouça minha história, compartilhe minha dor, nem precisa me dizer seu nome. Depois, me conte a sua, eu a ajudo como puder. Talvez a gente pudesse combinar a vingança juntos, não tem algum filme com um enredo parecido? Provavelmente sim, acho que todos os dramas possíveis já passaram pelo cinema. Porque não vou até lá?
Ela começou mesmo a chorar bem fininho. Se me achar impertinente, não faz mal, o que me faria mais mal do que o que estou passando agora? Eu gostaria que alguém sentasse ao meu lado e me dissesse: o que houve? Porque ela não gostaria? Ou pode estar arrependida, será que fez mal a alguém? Ah! deixa para lá. Cada um vive sua dor e pronto. Deixa ela quieta lá e eu aqui. Eu não conseguiria fazer nada mesmo por ela, nem ela por mim.”
O rapaz desviou os olhos da desconhecida e passou a olhar para o copo, novamente mergulhado em seus próprios pensamentos. Depois de minutos assim concentrado, ergueu a cabeça e deu com os olhos dela em si. Ambos trocaram um olhar de cumplicidade, como se a moça tivesse tido os mesmos pensamentos e aguardasse que ele a visse. Instintivamente trocaram um sorriso triste e o rapaz não mais hesitou: ergueu-se, tomou o copo nas mãos e aproximou-se, pois sentia que somente ela, companheira de dor, poderia compreendê-lo integralmente; e somente ele, no auge de seu sofrimento íntimo, poderia oferecer a ela um ombro amigo, para chorar e chorar.

BOA NOTÍCIA

Ana Lucia Santos fez sua inscrição no Concurso de Poesias "Poetas Caiçaras", promovido pela escritora Vanessa Hatoon, e seu trabalho foi selecionado entre mais de 100 trabalhos inscritos. Isso significa que nossa parceira do Laboratório do Escritor vai ter um de seus poemas – Tábuas - publicado, ao lado de outros 29 ganhadores, num livro a ser editado brevemente.

Azáleas

Trabalho coletivo a partir da palavra azáleas

Pela janela aberta da sala, o pai observava a filha, recém-chegada após a ausência de dez anos, colher azaléas, enquanto o sol ainda se mantinha no horizonte. Por mais que ela tivesse mudado, ainda conservava o jeito de menina no corpo de mulher. Tinha guardado também os mesmos gestos delicados da mãe. (Barbara- usei o verbo no pretérito imperfeito para ficar mais forte)
Nostálgico, o pai pôs-se a relembrar de quando a filha tinha nascido.
Não podia dizer que ela era o fruto de um grande amor. Casou mais por conveniência do que por qualquer outro motivo, mas quando a viu no berçário, a paixão foi instantânea. Outros filhos vieram, mas o amor por Marina foi sempre diferente. Os irmãos, Jonas e Lucas, sentiam ciúmes e não a reconheciam como irmã de sangue. Era negra.
As discussões eram constantes nas reuniões familiares e sempre seriam. Marina sentia-se mal e ficou pior quando seus irmãos a venderam a um mercador persa de passagem pela cidade.
Como poderia chamar isso de irmão? Vender a própria irmã era coisa do demônio. Apesar de que, naquela época, fosse comum essa transação, para qualquer cristão era uma atitude inaceitável. Por essa razão, e ultrapassando a ética e a moral, a menina resolveu vingar-se um por um.
Começou pelo irmão mais novo. Explorando seu lado jogador, arrumou um grupo de jogatina para ele acabar com seu dinheiro.
Fez o outro irmão perder-se na bebida e nas mulheres, principalmente na prostituta que lhe arranjara. Mas quando chegou ao pai, que a tudo assistia enclausurado na velhice, pediu perdão e quis voltar no tempo, no belo tempo em que colhia azaléas.

domingo, 1 de novembro de 2009

BALBÚRDIA

Eliana Pace

- Bom dia, bom dia, bom dia, bom dia a todos. Vão todos bem? Bem não devem estar, ou não nos encontraríamos aqui, nesta sala de espera.
- Ah, obrigada pelos elogios à minha elegância. Este tecido da minha roupa é caro, é Príncipe de Gales.
- Vestida para ir a um casamento? Imagina... Minha mãe exigia que estivéssemos sempre bem arrumados na hora de ir ao médico. Então, caprichávamos mesmo. Nas festas, então...
- Estou sempre impecável. Acordo às 5 horas da manhã, me arrumo toda, faço maquiagem e vou varrer a minha calçada na maior elegância.
– Ouço a previsão do tempo na rádio. Mas logo que ouço, esqueço. Então, vim de chapéu porque achei que ia fazer sol. Os óculos são para proteger meus olhos. Estranho a claridade.
- Isso não é guarda chuva, meu senhor, é guarda sol.
- Meu casaco está sem um botão, já vi. Caiu e não consegui encontrar outro igual. A senhora vai querer criar uma briga comigo, já vi tudo.
- Que mania essa de se queixar dos brasileiros. Tá todo mundo de carro novo na rua, não está? E ficam se queixando. Não vejo ninguém passar fome.
- Gosto de comer bem, e muito. Repito mesmo qualquer prato. E não como fora não, tem muita sujeira na comida que servem nos restaurantes. Imagina que outro dia comprei um bolo que estava com cascas de queijo na massa. Vai ver que era pra aumentar o peso. Que nojo. Fui na padaria reclamar, ora se fui. Disse pro dono: chama a atenção do padeiro.
- Faço belos jantares pra mim toda noite. Quando alguém me liga, aviso que se quiser jantar comigo é só aparecer... Hoje, minha senhora? Não, hoje não vou fazer jantar não, nem adiante se convidar...
- A senhora está guerreando comigo de novo? Vai te catar, vai.
- O que eu estava falando mesmo? Ta vendo? Se o senhor me interrompe, eu esqueço o que estava falando. Agora não adianta mais, esqueci e pronto. Venho esquecendo as coisas desde que fui assaltada e levei um tombo. Tenho que ir falar com o Serra. É, o governador.
- Como, vocês já vão embora? Ah, vão entrar na consulta, ta bom. Volta depois pra gente conversar mais um pouco.

O ENTERRO DA MINHA SOGRA

Tio Zinho (do Paulo Mauá)

Minha sogra morreu e resolvi homenageá-la com um caixão que parecia um carrão desses cheios de acessórios. Parecia uma dessas SUV (no caso dela, Sogra em Ultima Viagem). A carroceria do caixão em fibra de carbono para evitar vazamento de material tóxico na decomposição e contaminar o lençol freático.
Porta-malas grande porque ela era uma grande mala e eu queria as duas enterradas. Só que em vez de ser sem alça, ela era com alça e somando aos 130 quilos, pesava ainda mais. Dois canos de escapamentos: um para o veneno, que mesmo depois de morta ela continuava a eliminar, e o outro para os gases propriamente ditos. A mulher peidava demais. Porta-trecos à vontade: um para a dentadura, outro para spray de laquê e outro para remédio de unha encravada.
Aquele vidrinho do caixão que deixa o rosto à mostra era filmado (transparência zero). E aí é que apareceu um problema: o chefe dos coveiros, que também era um funcionário caxias, não queria permitir aquele vidro. Achava que tinha que ter alguma transparência. Quando tirou o filme, se assustou com a cara dela e além de permitir o filme, exigiu blindagem porque alguém no velório podia se assustar ainda mais com o rosto que parecia do Ronaldinho Gaúcho chupando limão. Mas pessoas que gostavam muito dela acharam a aparência serena.
No painel do caixão, para evitar o mau cheiro, um sachê de 10 quilos de creolina em pó aromatizava o ambiente.Uma TV de 7” passava os programas gravados do Silvio Santos e da Hebe Camargo. Cinto de três pontas para evitar, em caso de colisão, que a velha fosse projetada para fora. Ninguém queria que ela saísse mais de lá. Ah: os três pontos eram de solda.
Finamente, era hora de colocar aquela SUV no buraco. Mas antes de cobrirem com terra, eu falei: desliga a tração 4x4 para garantir que o caixão não saia mais.
Mandei escrever na lápide: Adeus tribufu, I miss you.