quarta-feira, 7 de abril de 2010

BYE, BYE, KABUL

(produção de um Conto com as seguintes palavras: penumbra/ Afeganistão/contra- senso/ sacrilégio/ jibóia/ destilar/ álibi/ papo-de-anjo)

Na penumbra do armazém, um incenso de mirra envolvia em névoa os pensamentos de Omar. Perdem-se na poeira do tempo as memórias do Afeganistão, berço conflituoso onde nasceu e cresceu. Desde tempos remotos, a guerra, seus escombros, perdas e todo tipo de contra-senso fazem do país uma paisagem da qual quase não se tem saudade.
Ah, saudade... Palavra bonita e doída que Omar aprendeu no Brasil. A caminhada até o país mais colorido que já pisou, de gente calorosa como o sol, foi permeada de desafios... Primeiro, a decepção para o pai, homem austero, respeitado, que construiu um empório de especiarias para o filho mais velho herdar e prosseguir. Depois, o tormento de encontrar a mãe a chorar pelos cantos, como se velasse um a um os guerrilheiros do lugar. Os irmãos também não aceitavam que toda uma tradição pudesse ceder à impulsividade do coração. Soava como um sacrilégio! Apenas a irmã caçula, Mira, vibrava com o provável desatino e sonhava com o dia de se render ao que não tem explicação.
As especiarias perfumadas fizeram fama em Kabul e cercanias. O hotel mais requintado da capital era cliente assíduo do empório e numa entrega de rotina, o som contagiante que vinha do saguão chamou a atenção do rapaz. Bailarinas curvilíneas serpenteavam feito jibóia a destilar encantamento na platéia.
A coreografia sensual, as vestes multicoloridas e o sorriso das moças criavam no local uma aura de festa e celebração que contrastavam com a sisudez de homens engravatados. Entre movimentos delicados e resolutos que brotavam daqueles quadris, a odalisca de um azul profundo fez Omar mergulhar num mar de águas desconhecidas. Quase perdeu o fôlego e nunca tinha sentido seu coração tão pulsante. Voltou à superfície com as palmas entusiasmadas dos espectadores.
Não demorou a descobrir que Lena, uma dançarina profissional, era brasileira em breve excursão pelo oriente. Os contatos com a equipe do hotel encurtaram a distância entre os dois e, como fogo em palha seca, não demorou a incendiar. Lena ainda tinha uma agenda a cumprir até retornar ao Brasil. Como uma Sherazade, contava sobre coisas, usos e costumes da sua terra natal, só que não tinha mil e uma noites com Omar, e eles sabiam disso.
A companhia de dança seguiu seu rumo e a tecnologia cuidou de mantê-los conectados apesar da distância.
Para a conversa com a família, ele tinha um álibi – o compromisso com a felicidade. Esse era o apelo do patriarca daquele clã, seu avô, que, antes de partir, deixara a mensagem bem gravada no seio de toda uma geração: “Num país em que a liberdade é um mito, precisamos ter imaginação e lutar pelos nossos sonhos de felicidade!” - dizia o velho com os olhos distantes, deixando transparecer que se pudesse voltar atrás, seria fiel a cada um dos seus desejos não realizados.
Apesar do cinza habitual, naquele sábado um laranja vibrante teimava em tingir o céu. Era um bom presságio para a partida do primogênito. Os deuses abençoaram e a família resignada aceitou a decisão.
Desde então, escaparam pelos vãos do tempo uns dez anos. No Recife antigo, Omar faz história com os temperos que refinam o paladar dos “chefs” mais badalados da gastronomia local e conta com a sabedoria do pai.
Hoje, Lena, sua mulher, se apresenta para uma multidão no marco zero da cidade. Uma coreografia especial pelo aniversário da capital, batizada de “papo-de-anjo” que promete adoçar a noite festiva dos pernambucanos.
No olhar do marido, aquela admiração da primeira vista o visita com a mesma intensidade e, apesar da saudade, sentimento que nomeia a falta dos afetos distantes, ele cantarola contente a sua versão para uma das relíquias de Chico Buarque: “... dancei com uma dona feliz que tem um tufão nos quadris. Bye, Bye, Kabul!”.
(Adriana Bispo)

Um comentário:

  1. Adriana,
    seu conto, além de delicado e criativo, serpenteia "feito jibóia a destilar encantamento na platéia."
    Merece estar entre páginas de livro. Beijos =)

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