quarta-feira, 31 de março de 2010

AGONIA

(Conto com as palavras: jibóia, Afeganistão, penumbra, papo de anjo, contra-senso, álibi, sacrilégio, destilar)

Estava ele recostado em sua cadeira, lendo o livro em voz alta, tão compenetrado que não parava nem para tomar fôlego.
Contava a história sobre o Afeganistão, um país tão distante que nem sei onde fica.
Eu ouvia desatenciosamente suas histórias.
Ele contava da guerra civil gerada naquele país, das intervenções estrangeiras como a invasão soviética, e como os talibãs se apropriaram de sua maior parte.
Que o país sofre com a seca e que o fornecimento de água doce era limitado.
Falou que o Afeganistão é um país montanhoso, que tem clima continental, com verões quentes e invernos frios. Que é frequentemente abalado por sismos.
Eu aqui ouvindo e observando seus gestos, o farfalhar daquele livro parecendo me conduzir a um espaço sem fim, a penumbra daquela sala, sua voz rouca e sufocada confabulando com a minha mente, feito uma jibóia a digerir o animal alvo do ataque. Meu corpo se enrolando à volta desse enredo, gotejando, tal qual o vinho a destilar.
Na minha imaginação, eu apertava essa angustia como uma presa, para esta libertar o ar dos seus pulmões. Sufocá-la assim até sua morte, exatamente como fazem essas serpentes.
Eu não estava suportando aquela situação, não queria ouvir aquela historia.
Nem observá-lo, com seus gestos tão robotizados.
Estou aqui atônito, frente a frente com este homem que conheço tão bem.
Que me fazia carinhos e satisfazia os meus desejos de criança.
Lembro dele me contando histórias tão lindas que eu viajava com os meus heróis.
Saí procurando em minha memória os momentos bons que havia passado ao seu lado e ao lado de minha família.
As festas e reuniões aconteciam em sua casa, que tinha um quintal muito grande. Eu e meus primos estávamos sempre aprontando algumas travessuras.
Muitas vezes, os safados de meus primos aprontavam e colocavam a culpa em mim. Eu então precisava ter um álibi e como uma das minhas primas tinha certa queda pela minha pessoa, eu a convencia a confirmar minha tese de que o culpado não era eu.
Minha avó, minha mãe e minhas tias ficavam na cozinha fazendo comidas deliciosas e colocavam todas aquelas guloseimas na mesa de jantar. Bolo, suco, frutas, café, chá, leite, pão, carne assada.
Hum! Só de pensar me enche a boca de água. Tinha também um doce que era feito com gemas de ovos, que depois de assado era mergulhado na calda de açúcar. Esse doce era chamado de papo de anjo. Ah! Como aquilo era bom, parecia que em minha volta havia uma legião de anjos cantando.
Agora me encontro com ele aqui dentro deste quarto, tão frio, tão sem vida, parecendo um quadro de natureza morta, onde ele fica contando a guerra e os costumes de um país tão distante, que nem sei se está entendendo o que lê.
Como é duro, como é pesado ver o meu avô vegetando. Foi um homem tão culto, um advogado brilhante. Para mim é um contra senso vê-lo nesta condição de letargia, fere muito meu coração. Ás vezes me revolta a situação, cometo até um sacrilégio e maldigo tudo quanto é sagrado, digo que não creio em nenhuma religião.
Parece que meu avô entendeu o meu sofrimento porque me chamou para junto dele, estendeu a sua mão e olhando fixo nos meus olhos, escancarou um sorriso maroto, como a dizer: Não tema, pois irei muito além do que você acredita.
Percebi então que era meu divagar que limitava seu viver.
(Vera Lucia de Araujo Rodrigues)

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