quinta-feira, 15 de abril de 2010

CONTO: O NINHO DO ESTRANGEIRO

Alberto dá duas batidas na porta, a segunda mais forte. Logo em seguida, surge no vão um vulto de mulher, uma silhueta sem feições nem voz. O retorno brusco não estava em seus planos. Tinha caído no mundo com sede de novidade e sem data para voltar, porém o infarto do pai abreviara tanta liberdade.
Quando Marta o recebeu, se deu conta de que uma década o apartara daquele lugar. Tinha os cabelos brancos e o rosto mais vincado e a governanta da casa vibrou com sua chegada.
Estava visivelmente ansioso, mas foi freado por ela. O coração do velho estava fragilizado e as emoções eram dosadas a conta-gotas, conforme recomendação do doutor. Tudo o que Alberto não desejava era causar problemas. Já carregava consigo uma coleção de rótulos negativos porque destoava daquela linhagem.
A temporada no exterior fizera com que o moço passasse a limpo muito do seu interior. A alma nômade nunca fora de fato aceita pela família e ele reconhecia que isso tinha o seu preço. Os amigos eram a família que ele se permitira escolher e tinha afetos espalhados por todo o globo, todavia, dentro de casa, era um verdadeiro estranho no ninho.
Contudo, voltar às origens tinha lá o seu sabor. Sentiu na pele o aconchego quando o aroma do café em dupla com bolo de aipim lhe saudaram o paladar. Não há no mundo sensação de pertencimento similar.
Seu quarto estava tal qual havia deixado. Era como se pacientemente o aguardasse. As raquetes de tênis, o mapa mundi colorindo a escrivaninha, cortinas entreabertas para ensolarar o ambiente e o ipê-amarelo dando as boas-vindas pela vidraça. No mural, as fotos do namoro interrompido, da saudosa mãe, do cachorro da infância e de tantas amizades que havia visto no aeroporto, em clima de despedida há 10 anos atrás.
Nas reminiscências do passado, ficou imerso pensando em suas raízes e em seu desprendimento. Depois da morte da mãe, cuja afinidade era de irmãos, não vira muito sentido em permanecer ali. O mundo dos negócios não era sua especialidade. Do pai herdara o nome e o gosto pelas viagens. E constatava aliviado que o braço direito da família era mesmo Virgínia, a irmã mais velha, forte como um jequitibá.
Descobriu-se com talento para a cozinha pelas mãos de Marta, e isso lhe fora muito útil em terras estrangeiras. Havia trabalhado em bistrôs franceses, cantinas italianas e deixara sua marca até nos pubs ingleses com drinks dos mais exóticos. Orgulhava-se bagagem de vida e da diversidade que experimentara - tudo isso havia permitido que Alberto resignificasse a sua história e os vínculos afetivos deixados na terra natal.
Marta o trouxe à tona avisando que o pai já estava preparado para vê-lo e o aguardava no quarto ao lado. Desde então, somente fotos, postais e e-mails os tinham mantido em contato. Quando viu aqueles olhos verdes marejados se deu conta que aquela era mais uma herança paterna. Abraçaram-se demoradamente. O coração resistiu ao teste.
Conversaram sem pressa sobre os países em que o filho ancorou. O pai sabia intimamente que seu garoto carregava no espírito uma porção dele mesmo. A identificação se dava pela via do pé na estrada. Sim, os Albertos eram cidadãos do mundo. Ele conhecia bem aquela inquietação, mas foi preciso o coração falhar para acolher amorosamente o jeito cigano do filho.
Alberto, por sua vez, nunca sentira tanta saudade de casa, do cheiro das comidas de Marta, do abraço apertado do pai e até do general que morava dentro de Virgínia. Por enquanto, as malas cederiam às gavetas. Era um estrangeiro reconhecendo o seu próprio território.
(Adriana Bispo)

Um comentário: