domingo, 31 de maio de 2009

Crônicas da Infância

Ana Lucia dos Santos


As lembranças de um tempo de infância me levam até Vitória, no Espírito Santo. E levam direto à minha mãe, conhecida como Maria Pequena, que contava histórias de um tempo em que também era criança. Contava coisas que, cada vez que me lembro, me parecem pouco prováveis, mas são histórias que cumprem a função de animar minhas memórias. Como a da morte prematura de seu pai e meu avô causada, pasme, pelo fato de ter comido ovo. A versão foi amplamente difundida nos anos seguintes, chegando aos netos e bisnetos.

José Clemente, esse era o nome do meu avô, era muito jovem. Aliás, com essa história, entendi que os jovens antigos também eram destemidos, meio sem noção de perigo. Claro que guardadas as devidas proporções. Tinha de quinze para dezesseis anos e teria cozinhado ovos, cortado em fatias e fritado. Que ousadia! Foi fatal, morreu imberbe, antes dos dezessete anos. Daí então, comer ovos na família, pelas gerações seguintes, só com muita cautela. Até hoje não como ovo de foram confortável e sem preocupações, tudo por causa da ousadia do meu avô. E as histórias não param aí.

Houve a famosa epopéia protagonizada por Maria Pequena e sua mãe que trabalhava como empregada doméstica numa cidade do interior de Minas Gerais, chamada Peçanha. Nunca encontrei a tal cidade nos mapas, mas acreditava na veracidade das histórias. Pois é, na tal casa, queriam ficar com a menina, minha mãe, como “cria da casa”, como era comum em cidades do interior. Teoricamente, isso lhe garantiria o futuro e, de quebra, um posto de empregada vitalícia.

A solução encontrada pela mãe de Maria Pequena para evitar o destino traçado foi fugir, mudando o rumo da história. Saíram na calada da madrugada, tinha avisado à filha, e minha mãe, para acordar em silêncio, pra ninguém ouvir. E assim foi. A imagem que ficou para aquela menina de sete anos foi de uma casa desaparecendo ao longe, vista de cima da montanha, que ia ficando cada vez menor, até sumir. Herdei a imagem, pelo visto, da casa desaparecendo ao longe, tamanha a veracidade da narrativa da minha mãe.

Andaram muitos dias, semanas à pé, de Minas Gerais até o Espírito Santo. Encontraram no trajeto outros grupos de caminhantes, tropeiros, pegaram algumas pequenas caronas em lombo de burro, numa grande e verdadeira epopéia. As imagens da caminhada, contadas por minha mãe, também herdei. O grande esforço ficou na minha mente e serviu de inspiração. Invocava as antepassadas andarilhas e guerreiras da minha família nos momentos difíceis que vieram no futuro.

Mas o que mais impressionava em Maria Pequena era o seu jeito de ser mãe. Teve nove filhos que nasceram um após o outro, sem trégua.

Os caminhos daquela mulher exigiram muita firmeza. Difícil controlar as finanças, difícil administrar casa e filhos, difícil controlar a vida agitada do marido, sempre envolvido em alguma coisa nova, fosse mulher, trabalho, Sindicato, fosse a própria a família. Tornou-se uma mulher muito séria, dura na criação dos filhos que sabiam que a mãe tinha um porte seguro. Aceitavam os seus “nãos”. E quando ela falava não, era não. Às vezes, nem falava. Bastava um olhar com os olhos apertados, como que a prometer sérios castigos em caso de desobediência. Batendo com cinta quando achava necessário, mas protegendo quando avaliava que as conseqüências poderiam ser piores, caso o pai agisse.

Houve um episódio inesquecível em que uma das crianças, numa briga entre elas, espatifou em mil pedaços o vidro de uma cristaleira antiga, muito bonita, que guardava copos e louças pouco usadas, que haviam ganhado no casamento que já ia longe. Tanto o móvel quanto o que continha eram considerados preciosos para os pais. A mãe assustada, depois de repreender os faltosos, tratou de recolher todos os cacos, tirar o vidro restante e jogar no lixo. Como o vidro da cristaleira era impecavelmente limpo, na verdade não se percebia que ele não estava lá. A mãe resolveu esperar a oportunidade certa para relatar o fato ao marido. Afinal, o Sr. Eponino andava muito nervoso naquela época, pouco trabalho na estiva, reuniões sindicais.

O tempo foi passando e uma noite, pouco mais de uma semana depois do acontecido, o Sr Eponino encontrou tempo para ouvir sua novela de rádio. Não havia televisão naquela época e as novelas de rádio eram animadamente acompanhadas nas casas. Nada diferente naquela casa. O problema é que o rádio ficava em cima da cristaleira, na altura da cabeça do pai ouvinte. Dona Maria Pequena não encontrou jeito de remover do local nem o pai, nem o rádio. Tensão na sala. O pai de pé ao lado da cristaleira, quase acabando o capítulo da novela, num momento de empolgação, se escorou no que seria o vidro do móvel e pronto, o “leite foi derramado”! Desequilibrou-se, caiu em cima de copos e pratos, quebrando vários que se estilhaçaram no chão. A emenda ficou pior que o soneto. Correia para todo lado. Não sobrou um dos filhos sequer na sala. Só se ouviram os gritos do pai:

- Maria, o que é isto aqui?
- O que aconteceu, quem quebrou este vidro?

Os filhos fecharam as portas dos quartos, não saíram mais, todos dormiram mais cedo naquela noite. Não souberam o que aconteceu depois. Certamente, os pais conversaram muito. Mas desta, nós nos livramos, graças à nossa mãe.

O fato é que ela, Dona Maria Pequena, sobreviveu a esses percalços. E de pequena não tinha nada. Era sim, uma grande mulher. Anônima, como tantas outras, mas não para os que vieram depois dela, em linha descendente. Não para os filhos, ainda que não reconhecessem sua grandeza quando pequenos, pois quase nunca é suficiente o reconhecimento dos filhos para com os pais. Ainda que não o tenham reconhecido de forma suficiente quando adultos, a própria existências dos filhos lhe fizeram jus. A firmeza de caráter para dizer não quando necessário e a flexibilidade e delicadeza quando também necessário, essa herança ela nos deixou.

4 comentários:

  1. Interessante o seu texto, Ana Lúcia. Você escreve bem, é clara e conduz o leitor.
    Histórias de família são cativantes, falamos com conhecimento de causa, sabemos da veracidade.
    beijos...

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  2. Ana Lúcia,
    Seu texto me arrebatou.
    Forte, vigoroso, cheio de vida e veracidade.
    Muito obrigada e parabéns!!!
    Quero mais!
    Beijos,
    Fabiana.

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  3. Pode ir se preparando para escrever a história da familia, Ana Lucia. Parabéns, é uma narrativa muito sensivel. Beijos,

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  4. Lindo texto, mãe
    você soube falar muito de nossa família com um poesia íncrivel e sincera.Parabéns!
    Luana

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