segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O ÚLTIMO DRINK

Paulo Mauá

Sob o clima quente caribenho, Perez não se queixa do calor, sozinho em uma das mesas externas do Tropicana´s Bar, em plena Avenida Malecon, ponto de encontro de turistas e moradores de Havana.
Mesmo com o terno cinza e a gravata de linho em forma de serpente cruel em qualquer pescoço latino-americano, o que mais o incomoda é a missão daquela manhã. É o primeiro dia de janeiro de 1959 e com o sono atrasado devido à festa de final de ano, aguarda ser abordado por um estranho em mais uma incumbência oficiosa do seu serviço perigoso.
Ser agente secreto traz características excitantes e românticas, baseadas nos roteiros de cinema, mas não passa de fonte inesgotável de insegurança pessoal por não poder confiar em ninguém. Ser espião é ter o dom de transformar labuta em fel entre festas, trincheiras, mentiras e disfarces.
- Garçonete, mais um daiquiri, por favor.
A expectativa do encontro com o informante dos guerrilheiros escondidos nas florestas de Sierra Madre faz com que o corpo multiplique o suor na testa de Perez em gotas persistentes. E não são nem 11 horas da manhã.
A atendente, em inglês de péssima pronúncia em contrapartida à sua estonteante beleza trigueira, deixa o daiquiri à sua frente, além do sorriso branco imenso em troca da gorjeta. O dólar sai do paletó rapidamente. Ele olha para o copo e já pede outro. Aquele drink não daria nem para o começo. Ela some dentro do bar como num passe de mágica.
Ser cubano e compartilhar as idéias do perpétuo ditador Fulgêncio Batista, desde a década de 40 no cargo através de diversos golpes de estado, é viver no fio da navalha. A prostituição, a corrupção e as negociatas com os Estados Unidos caracterizaram o presidente como inimigo número um do povo. Os poderosos fizeram de Cuba o quintal do perverso capitalismo e um país fragilizado. Pior que isso, é ser agente duplo no complicado trânsito de informações secretas do governo e dos rebeldes. Perez estava cansado de viver assim.
O sol, forte e poderoso avança no céu, içando a angústia da espera.
De repente, um vulto na cadeira ao lado, disfarçado sob um chapéu de palha de aba larga. Não é possível descobrir se é cubano, ianque, jovem ou velho, até mesmo homem ou mulher.
Tenta olhar o rosto do recém-chegado denotando discrição, mas lembra do objetivo da missão: trocar as palavras-chave, pegar o envelope e partir de imediato, sem riscos tangíveis.
A primeira senha é dele. Arrisca as palavras em um fôlego só:
- Cuando calienta el sol, hasta la playa.
A resposta vem em forma de perguntas curtas:
- Te gusta Lola ? Te gusta Carmen ?
A voz é forçada. Um som feminino rouco simulando o sexo oposto.
Ele continua com as senhas de segurança:
- Me gustan todas. Ô, como me gustan, ô, ô, ô.
O contato responde implacável:
- Ai caramba, madrecita.
Pronto. O reconhecimento está feito e a transação precisa ser finalizada. O envelope pardo troca de mãos. Perez, aliviado, esvazia o copo em um único gole e lembra da formosa garçonete. Será que ela demora com o segundo daiquiri?
Repara que o vulto de chapéu nada discreto permanece ao seu lado. Isso não estava previsto.
A voz quase conhecida, agora totalmente solta e sensual, convida-o:
- Toma um mojito comigo ?

Que senha nova é aquela? Perez descobre no perfil revelado a garçonete sumida. Ela é o contato da missão quase suicida. A agradável surpresa suscita a dúvida para um profissional tarimbado como ele: e se for uma isca? Começa a suar de verdade enquanto a beleza indiscutível da morena cinge suas veias. A razão, senhora absoluta nos momentos instáveis, esvai-se entre os capítulos de regras que reza a cartilha de espionagem mundial.
- Você quer ou não quer o meu mojito, Perez ?
Ele hesita um pouco, cai na real e olha para os lados, preocupado com os transeuntes. Resignado, aceita com um sinal de cabeça mas pergunta em seguida:
- Mas quem vai servir a gente, Rúbia, se está dando o inusitado prazer de estar ao meu lado nesse momento? Até quando você poderá permanecer comigo? Na verdade, o que me aflige é a incerteza de como vamos viver a partir de agora...Neste momento, o nosso traiçoeiro presidente Batista foge para os Estados Unidos, com as malas cheias de dólar. Fidel e seus companheiros estão tomando Havana por uma Cuba melhor. E nós? O que vamos fazer?
- Perez, querido, somos responsáveis pelos nossos destinos. Não pretendo me esconder mais. Quero ser abraçada do amanhecer ao por do sol. Mas preciso dos seus braços junto a mim. Se vou largar minhas aflições, quero que abandone as suas preocupações também. Viva mais. Solte-se no ritmo da alma. Quero bailar contigo o ano inteiro, a vida toda.

Final 1

Os olhos dele revelam a emoção e o peito não se contem:
- Você tem razão. Me ensine o mambo.
Perez se aproxima de Rúbia para o primeiro beijo público de suas vidas. Antes que os lábios se toquem, um estampido de rifle AK-47 anuncia a trajetória da bala, vinda da janela do 3º andar do prédio em frente ao Tropicana´s Bar. O belo rosto da mulher bate inerte contra a mesa. Antes que ele a socorra ou descubra de que lado veio o inoportuno golpe, outro estampido da arma russa se faz ouvir entre os gritos na multidão.

Final 2

Os olhos dele revelam a emoção e o peito não se contem:
- Você tem razão. Me ensine o mambo.
O envelope abandonado sob a mesa é pisoteado pelas botas dos homens liderados por Guevara. Por instantes, o ritmo da bela ilha caribenha mistura doses calientes de democracia e utopia. A praia de Varadero testemunha ao longe as pegadas soltas de Rúbia e Perez revolucionadas para sempre a partir de uma manhã de ano novo.

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