quarta-feira, 31 de março de 2010

OS HOMENS SEM PÉS

(Conto com as palavras: jibóia, Afeganistão, penumbra, papo de anjo, contra-senso, álibi, sacrilégio, destilar)

Calixto pouco falava. Mais ouvia. Quando se envolvia em conversa, ia logo dizendo que não dava palpite na roda porque não era homem para variações. Com ele tinha de ser direto e reto. Não gostava de temas que envolvessem futebol e essas coisas do dia a dia das cidades. Homem do campo fora acostumado aos movimentos da natureza bruta, chuva no lombo e sol inclemente na cabeça, não havia tempestade nem tão pouco vento forte que o fizesse largar o trabalho.
Não fosse um estranho hábito, e até certo contra-senso com a postura que demonstrava em público, Calixto seria como a maioria dos seus companheiros de mesa e copo que, como ele, passado dos oitenta, retirado da vida laboral, alimentava esperanças de um dia ganhar na loteria e poder comprar amor, atenção e o respeito dos familiares para raros anseios e sonhos modestos.
Nada de muito extravagante, o costume que tomara conta de Calixto e, até certo ponto, criara um álibi para sair às noites de quinta, era o de contar histórias para crianças de um orfanato lá pelos lados da Vila Guarani. Os pequenos internos ficavam inquietos e excitados quando a noite de quinta-feira se aproximava. Naquele dia, chovesse canivete, lá estava Calixto pontualmente, às oito da noite, para conduzir as crianças dos quatro aos doze anos a uma viagem de sonho, fora dos limites estreitos dos muros do abrigo e, principalmente, dos cantos escuros do desamparo e da solidão.
Calixto não elaborava seus contos com antecedência. Ao contrário, criava parte do enredo no caminho para a reunião e lá, no meio da molecada, aos poucos, montava o cenário e os personagens que, por mágica, tomavam forma e ganhavam locais, nomes e os tipos que ambientariam a história da noite.
Aquela quinta não foi diferente. Caminho tomado, passo calmo, concentração ativa, e as imagens a pulular em sua mente como se saltassem de uma caixa mágica. Cores, cheiros, tamanhos, olhos, cabeças, com e sem cabelos, caras limpas, dormidas, acesas, alegres, tristes, pintadas, castelos, cavaleiros, dragões, serpentes jibóias enormes, e, por fim, o enredo. Este sim, criado por último, acolhia todo aquele caleidoscópio com paisagens e lugares que iam se juntando para formar um espetáculo igual aos montados por atores mambembes: chão limpo, palco levantado, lona estendida e a cortina, que, aos poucos, ao abrir e fechar dá a dinâmica das cenas e dos personagens.
Calixto caminhava na parte final do trajeto que o separava da creche. Exatos quatro últimos quarteirões, os mais escuros pela ausência sistemática da iluminação pública. No trecho ficava a maior praça do bairro. Toda em desnível para encanto dos que se deixam alumbrar pela mistura do real e do imaginário, e denso bosque com muitas árvores e arbustos. Ali conviviam paineiras, ipês, patas de vaca, amoreiras, embaúbas, pitangueiras e damas da noite, todas cercadas por canteiros circulares e passarelas estreitas. À noite, na penumbra, imaginava Calixto ser o local mágico apropriado para que os entes da natureza deixassem a vida interior e conviverem, à distância, com os humanos. Não com todos, somente com aqueles cuja sensibilidade é por eles percebida por meio de uma qualidade muito própria: a de estarem ainda próximos do ato criador original.
Estaria Calixto cometendo sacrilégio ao trabalhar com esta visão fantástica?
O transitar naquele espaço deu o mote para a conversa da noite. E não foi diferente. Metido na mistura mágica de pensamento e ação, Calixto sentiu que alguém o observava entre os arbustos. Parou, firmou os olhos e ficou com a impressão de ter visto dois meninos muito pequenos, tão clarinhos que refletiam a luz da lua. A impressão riscou sua mente como um relâmpago, tão bem construída, que um detalhe fixou em sua retina: as crianças não tinham pés! Isto mesmo, sem os pés! No mesmo instante passou por sua mente a questão: nasceram assim ou foram vítimas de algum evento sinistro? Pensou nos mutilados do Afeganistão, inocentes colhidos pelos efeitos dos atos de ódio e violência. Afastou a imagem ruim e passou a construir a trama de um conto feliz.
Aturdido com a visão ou quase visão, seguiu seu rumo. Espantado por um lado e feliz por outro, o tema da noite estava escolhido: A praça dos homens sem pés.
Reuniu as crianças como de costume e começou a lhes falar sobre o mundo fantástico dos sem-pés.
Transcorreu sobre o parentesco dos sem-pés com os duendes e gnomos; como se formavam as suas famílias, das atribuições de guardiões das raízes das árvores seculares, para delas extrair e destilar a seiva que os alimentava; do gosto pelo doce papo de anjo; do amor pela natureza e por tudo que o Criador colocou sobre a face da terra.
Disse também sobre a infância, juventude e velhice dos sem-pés, sua relação com os humanos e da fórmula mágica que eles inventaram para ficarem visíveis às crianças. Nesse ponto, já no fim da história, Calixto foi interpelado por Guto, menino vivo, agitado, que lhe perguntou: - De que era feita a fórmula mágica? Calixto parou, tomou fôlego, e repetiu, de pronto, que a fórmula da poção maravilhosa estava muito bem guardada no centro da terra e não fora revelada para ele porém, seu neto, Eduardo, que sonhara com os sem-pés, dissera que apenas um dos componentes da poção poderia ser revelado: uma farinha muito fina e comestível, o nome revelaria na próxima quinta.
Encerrado o conto da noite, um alvoroço total se instalou no ambiente. A meninada alegre e barulhenta pedia insistentemente para Calixto antecipar a continuação da história. Foi difícil, mas Calixto resistiu. Após as despedidas e a promessa de voltar, despediu-se e seguiu contente pensando na próxima quinta.
Ao passar novamente pela praça mágica ficou a refletir: como justificar para os seus pequenos ouvintes o fato de alguém andar sem os pés...?
(José Augusto Bertelli)

Um comentário:

  1. evitaria repetir " ...na quinta não foi diferente " e logo depois ..." e naõ foi diferente " . Essa historia esta interessante.

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