sexta-feira, 19 de março de 2010

Maré

Todo dia o mesmo caminho: Canal 4 até a praia. No trajeto, o primeiro café da Santista, diferente dos demais, coado no orvalho, como dizem os apreciadores. Sempre pontual e tranquila, segue rumo às lanchas para o Guarujá.
Aquela terça-feira não é diferente, exceto pela ausência das gaivotas nos contrafortes da avenida. Estavam mais distantes, ciscando rente à maré, entre mariscos e pequenos caranguejos, a refeição do dia.
Caminhava como quem conhecia cada calçada, cada vão e viela. Poderia andar de olhos fechados e saberia exatamente as cores do dia.
Mas essa terça guardava uma surpresa a modificar não só o ritmo da sua caminhada e as cores da sua paisagem. Alterava subitamente o pulsar do seu coração. Lá estava ela, caminhando ao seu encontro, tantos anos depois.
Não havia necessidade de puxar pela memória. Seu rosto tinha povoado seus sonhos por toda uma vida. Seu corpo contava, nas linhas que a vida imprimiu, a trajetória de mãe de tantos filhos, nove entre os vivos e os mortos, mas isso só lhe dava mais graça.
O espaço que separava suas direções tornou-se eterno para ela. Segundos decisivos. Seria reconhecida? Gostaria de ter sua terça alterada? O tempo parece deslizar enquanto ela se aproxima.
Coração a mil e simplesmente não sabe o que fazer. E se não se lembrar?
A aproximação inesperada, excitante e dolorida, transforma aquela manhã num mar de emoções tão fortes que a faz antever a mãe que o tempo levara tão longe. Aguardou o encontro, estática, rente ao meio fio, e, de braços abertos, se preparou para segurar sua Santinha. Fechou os olhos, sentiu a brisa e o cheiro da manhã e assim ficou por muito tempo. Quando os abriu, viu que o encontro ficara para uma outra vez, quem sabe numa outra terça-feira. A barca apitou, o motor rugiu e a esperança, como sempre, se renovou.

José Augusto Bertelli

Um comentário:

  1. Bertelli,

    Sua estória tomou um rumo inesperado mas nem por isso menos encantador. Lindo desfecho !
    um abraço

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