terça-feira, 20 de outubro de 2009

A Valsa do Adeus

conto de Paulo Mauá

Introdução

Embora conhecida desde o século XV, quando surgiu na Alemanha, a valsa foi consagrada 400 anos depois, por meio da família Strauss, nos saraus vienenses e teve como fiéis seguidores Chopin e Ravel, dentre outros.
A valsa é um gênero musical baseado em compasso ternário, ou seja, três tempos moderados: um-tá-tá, um-tá-tá, um-tá-tá. Portanto, bastam três semínimas por compasso, onde cada semínima é representada por uma nota toda preenchida com uma haste.
A palavra valsa vem do verbo alemão Walzen que significa girar ou deslizar. Para dançar a madrugada adentro, é só seguir o ritmo.

1º tempo do compasso

Estou linda.
O espelho mágico confirma: deslumbrante.
As meninas retocam a maquiagem antes da entrada no salão de baile. Um arrepio percorre meus braços arrebatando o meu espírito e a face não disfarça a despedida do meu sorriso de menina. O peito ofegante prevê a mulher que vem por aí. Que venha!
- Tem rímel?
- Pode pegar.
- Obrigada.
Estamos alvoroçadas e prontas para a sonhada dança com os pares. Silvinha irá com o César. A Rô com o Gabriel. Não sei quem vai dançar com a Aninha Souza. A Aninha Clemente conseguiu fisgar o filho do prefeito. Mateus vai dançar com a Leila. Boa sorte pra ela. E pra ele também. Esses meninos, cheirando a terno alugado, são bonitinhos mas me despertam interesse apenas para um final de semana descompromissado. Quero mais.
Esta noite será a noite.
Se tenho medo? Confesso que sim. Mas sou Amarílis, a guerreira, como minha avó, e sei que a madrugada será a ponte de ida sem volta da terra das brincadeiras inocentes para o reino do ser mulher. Nada pior do que viver sufocada, com o coração marcado pela centelha da paixão improvável.
Adeus para o gosta desse, gosta daquele, panelinhas de comida, brincar de casinha e bonecas. Rasgo em definitivo a sensação ilimitada do faz de conta.
Estou pronta para suportar o amanhã. O risco será meu. Desde o dia em que fiz amor pela primeira vez com o Mateus, assumi o destino. Meu pai nem imagina que não sou mais virgem. Talvez ele saiba e nunca tenha me dito para não me deixar em uma situação constrangedora.
Ele sente até hoje a morte da mamãe, mas não posso me responsabilizar pelo estado sentimental dele nem pelo que ocorreu com ela. Só eu sei como as minhas veias pulsam desde então. A vida é um reino de fatalidades e conseqüências. Não tenho escolha.
- Vamos, meninas, os convidados estão esperando. Vocês são as estrelas de hoje. Quero ver todas sorrindo.
Pronto, a ponte elevadiça já está sobre o poço. Preciso girar meu destino e sair do castelo.

2º tempo do compasso

Estou suando e não sei se é calor ou nervoso. Nunca gostei de dançar e depois de viúvo, fiquei mais travado ainda. Vale o sacrifício pela felicidade de Amarílis. Elas vão demorar muito para aparecer?
Desde a morte de Suzana, tento ser um pai mais atuante. Não sou perfeito, pois não consigo ser o pai carinhoso, o pai príncipe, o pai herói e os outros pais que ela tanto precisa.
Onde está o Mateus? Achei que ela ia dançar com ele, mas a honra foi minha. Ele é simpático, educado, bom menino, ótima companhia para a minha filha, mas Amarílis considera-o infantil. Ela é quem sabe o que é melhor para ela. Às vezes me pergunto se ela ainda é virgem. Se não fosse mais, acho que teria me revelado. Minha bonequinha está deixando de ser criança para virar adolescente.
- Ela está uma mulher feita, né filho ?
- Mãe, a senhora é suspeita: neta querida, mesmo nome que a senhora, sei não.
- Ela já é uma mulher.
Mudaram as luzes, o som, acho que o portão vai abrir. Descem as primeiras meninas e a amiguinha dela da escola é logo a primeira. Nossa, a outra quase caiu. Lá vem minha princesa. Continuo suando frio. Que os céus me ajudem a deslizar pelo salão e não pisar no pé dela.

3º tempo do compasso

Em casa, a nuvem multicolorida de papéis de presente descansa sobre o sofá. A filha está apreensiva. O pai sente-se realizado, mas saudoso.
- Sua mãe ficaria muito feliz em compartilhar este momento conosco.
Amarílis desconversa:
- Olha, um colar de prata com um anjinho. Ganhei da vovó. Adorei.
O chuveiro ameniza o cansaço do pai. Amanhã será outro dia.
- Durma bem, querida.
- Você também. Te amo, pai.
- Também te amo.
Deitado, lembra dos convidados, da valsa com a filha, da falta que sente do colo da esposa. Os pensamentos entram na fase de turbulência do sono.
A porta do quarto abre silenciosamente.
Passos avançando em sua direção.
O movimento do lençol desperta-o um pouco e ainda confuso sente um beijo leve na nuca.
Será sonho?
Pequenos seios repousam nas suas costas.
Delicadas mãos deslizam à procura do seu sexo.
O susto estanca o coração de imediato e antes que possa girar o dorso, a mulher sussurra em seu ouvido:
- Pssst...faz de conta que eu sou a mamãe.

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