segunda-feira, 19 de outubro de 2009

PENSAMENTOS IMPERFEITOS

Ana Lucia dos Santos
Nunca entendi direito o comportamento dos brasileiros com relação às questões de princípios e ética. Sempre me incomodou a tendência das pessoas em quererem alguma vantagem, importando pouco o preço a pagar. Uma benesse qualquer, algum brinde, um prêmio, merecido ou não, o que me faz lembrar a frase popular “injeção de graça, aceito até na testa”. Ou aquela “propaganda do Gerson – jogador de futebol - em que dizia: “gosto de levar vantagem em tudo, certo!

Quando vi, nos últimos dias, o resultado de uma pesquisa que falava do perfil “ético” dos brasileiros, em que, mais de 90% das pessoas se declaravam contra práticas de corrupção, ao mesmo tempo em que 83% admitiam terem se envolvido em pequenos atos de corrupção, práticas ilegítimas, vendas de votos, etc., me senti de alguma forma contemplada em minhas inquietações.

Apesar disso, persistiu a vontade de compreender este fenômeno que me pareceu semelhante a um paradoxo, a um pensamento imperfeito. Todos nós sabemos que acontece exatamente assim, basta olhar ao redor, no cotidiano da vida de cada um de nós. Com toda a indignação com o tal perfil ético dos brasileiros, rememorando o meu dia, ainda hoje me flagrei cometendo dois pequenos deslizes. Um com o homem que veio entregar o gás, para quem dei uma gorjeta por ter trazido o botijão e colocado debaixo da pia; outro com o menino do supermercado que trouxe as compras, depois do esforço que fez pra subir com tudo no elevador, além de ter feito a entrega de bicicleta num dia de chuva. Para o menino, a gorjeta foi maior. Ambos os serviços já estavam pagos pelos empregadores, não sei se bem pagos. Mas tudo o que fiz foi estimular uma ética corrupta, a tal da gorjeta. Ou seja, fico indignada e me posiciono contra a corrupção, mas sem perceber, cometo pequenas transgressões. Senti-me envergonhada. Vergonha que me fez lembrar meu pai.

Era um homem honesto. Imagino que se ouvisse a notícia da pesquisa, oscilaria entre esbravejar indignado, intercalando com momentos de tristeza pelos cantos da casa, balançando a cabeça num gesto de desaprovação. Era do tipo de pessoa que perdia o sono por uma conta atrasada dois ou três dias. Na condição de filha, me orgulhava. Mas a verdade é que não herdei toda aquela rigidez. Se assim fosse, estaria há várias semanas sem dormir. Mas também não chego, ou não chegava a me achar parecida com os 83% dos brasileiros da pesquisa.

Apesar dos dois pequenos deslizes de hoje, saio em minha defesa, comprovando com uma situação emblemática. Há alguns anos atrás, tive um cargo de gerenciamento num serviço público. O cargo, modestamente, acredito, foi pela competência, embora também possa ter sido por conhecer pessoas que tinham poder para lá me colocar.

O problema é que eu não segui o “script” esperado pela família. Não tentei “colocar pra dentro” parentes desafortunados. E eram muitos os que me cobravam, dizendo: - É impossível que você, nesta hora, não pense na sua família, todo mundo faz isto, ajuda os seus, etc. Eu pensava, mas achava que não podia cair nessa esparrela. Por isso, acabei incompreendida e caí, sim, no ostracismo dentro da família, por sequer ter tentado dar uma força, indicar alguém. Até hoje ainda amargo um pouco deste isolamento.

Não sei se é o caso de se condenar os brasileiros. Há que se entender. Apesar de achar ser coisa para cientistas sociais e analistas de pesquisas, ainda assim, tentando apaziguar a consciência devido ao meu próprio envolvimento nos pequenos atos de corrupção, “meto a minha colher” e tento explicações.

Somos um povo que, na sua formação, viveu muitas influências. Quase 400 anos depois de ser “descoberto”, o Brasil ainda era uma sociedade que havia acabado de sair do regime escravocrata (sem esquecer que foi o último país a abolir oficialmente a escravidão). Naquela época, regra geral, os “cidadãos livres” e mais abastados tinham aversão à idéia do trabalho pesado, duro. Era coisa indigna, para negros e escravos.

Bem, se tomarmos distância e olharmos numa visão panorâmica o que aconteceu com o Brasil nos quase 110 anos seguintes aos referidos 400, que é onde estamos hoje, foi uma imensa transformação, quase um salto mortal dado da noite para o dia.

Do ponto de vista da longa história da humanidade, estes 110 anos significariam um pequeno lapso de tempo, como o passar das horas de uma noite. Corresponderia, numa visão kafkiniana, à metamorfose sofrida pelo personagem central de seu livro, que acordou numa certa manhã e havia se transformada numa grande barata. Só que no caso do Brasil, uma metamorfose invertida. Dormiu sendo uma enorme barata cascuda e acordou no dia seguinte como ser humano.

Neste caso, o Brasil vai precisar se esforçar muito, enfrentar o medo de rever conceitos, resgatar valores e princípios, ter comportamentos mais humanos. Ou, se não conseguir, como o personagem de Kafka metamorfoseado, morre como uma barata gigante e cascuda, da qual ninguém nem o mundo sentirão falta.

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