quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Abel e o irmão

Paulo Mauá

Panos ensangüentados, barbas mal feitas e corpos confusos.

A precária trincheira era o resultado da esperança ceifada dos que defendiam o arraial até o último respirar. Para os dois rapazes, poderia ser o último colo.
A quarta expedição, formada pelo exército do governo federal, homens de confiança dos fazendeiros locais e membros atuantes da igreja, avançava implacavelmente sobre os últimos resistentes. A ordem recebida de que ninguém deveria sobreviver para contar a história estava estampada no rosto de cada soldado.
Aos capturados, a degola. O único jeito de sair vivo daquela tragédia era estar do lado mais forte ou fugir como rato do mato.
Abel e o irmão mais velho estavam apavorados, sem ferimento aparente, sem munição, misturados a restos de gente de olhos voltados para o céu de um azul permanente à espera de um milagre. Poucas eram as alternativas de sobrevivência.
Restava sim, a peixeira na cintura e a vontade aperreada de vencer, mais uma vez, um momento crítico na vida. Estavam munidos de fé e perseverança perante o estado das coisas e das pessoas do nordeste brasileiro.
A tela triste pintada com os pincéis da fome, seca, violência, abandono político, foi pano para o beato Antonio Conselheiro criar uma cidade com mais de 5000 casas de pau a pique e uma multidão de fiéis. Prometia, com populismo e inteligência de líder nato, a nova república com fartura de trabalho, comida e a condição do retorno à monarquia.
Os dois irmãos buscaram por tanto tempo o reino encantado e um rei de coração aberto e pleno de boas intenções.
Abel nasceu, a mãe morreu e depois de uma década abandonados no pó e vivendo de resto d´água, ele e o irmão largaram o nada e tomaram a trilha para o oeste do sertão baiano. Conheceriam o tal de mar, grande lago com gosto de sal, verde como os olhos de Abel. Fincariam o pé em uma pacata aldeia de pescadores e teriam filhos, casa de verdade, uma mulher para acarinhar e uma jangada.
Mas, vira aqui, vira ali, calor demasiado na moleira e desorientados, rumaram para o norte do estado. E nada de aparecer o mar. Há um ano e meio depararam com o amontoado de pernas e miséria chamado Canudos.
A acolhida inicial dos moradores foi de imensa alegria para que os dois ficassem e criassem raízes. Com o passar do tempo, o paraíso cantado na literatura de cordel não era muito diferente do lugar onde haviam nascido.
O íntimo da alma, assustado com o fanatismo dos jagunços e dos sertanejos desempregados, entrava em desespero com o assobio das balas sobre as cabeças. O contingente de inimigos era maior que os anteriores e não parava de avançar.
O irmão mais velho pressente o que está para acontecer e toma a decisão:
- Corre, Abel, vem, vem.

Ergue-se da vala fétida, puxa o braço do irmão e, destrambelhados na direção oposta do batalhão de assassinos, tropeçam em corpos e quimeras abandonadas.
A última cerca que limita a vila está a menos de cinqüenta metros.
O som dos invasores está distante, como se pertencesse a um passado sem volta. Isso é bom sinal. Já podem escutar a melodia matinal do juriti, sentir o frescor da sombra das árvores copadas do quintal da nova casa e os respingos do riacho sinuoso no fundo do sítio fértil.
Os passos ligeiros das sandálias de couro cravando o chão e a respiração ofegante dos irmãos ditam o ritmo da alucinada corrida. A linha de chegada está próxima. De repente, um som agudo precede o barulho seco de um corpo no solo árido.

O mais velho pára, gira o tronco e vê um saco úmido de carne e suor. De joelhos, segura com carinho a nuca do irmão.
- ... o que aconteceu ? Porque paramos?
- Calma, Abel. Cê vai ficá bem. Respira fundo.
- ... eu... tô bem...

Naquele instante, a ilusão do mundo justo está desaparecendo.
- ... estou com sono... quero dormir ...
- Não desista. Olha pra mim. Olha pra mim !!!
- ...noite passada... tive um sonho...

O irmão tentava estancar o fluxo de sangue sem sucesso.
-... sonhei que chovia uma chuva colorida... todas as cores... sem parar... chovia tanto... um jardim... muita árvore... frutas... parecia um açude bem grande... que nem deve ser o tal do mar... devíamos ter ido pro mar... verde...
- Ainda vamos ver o mar. Não feche os olhos. Fica comigo !!!

Uma avalanche de passos apressados, gritos e galopes cresce lentamente.
- ... e chovia... dia sim, outro também... e nos dias de enchente, quando a maré crescia, a água verde subia até a figueira gigante... a gente pegando os figos... de dar água na boca... o mais bonito pra mãe...

O som avassalador dos invasores aproximava-os da chacina.
- ... que barulho é esse... é a chuva ?
- É. A chuva colorida tá vindo.

No abraço exagerado, a peixeira atravessa Abel como beijo fraterno de misericórdia e antes que os fuzis do pelotão os alcance, ela desfere mais um golpe. O último.
Os recém chegados crivam, com centenas de balas inúteis, os sonhos interrompidos de Abel e o irmão.

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