segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Coisas de Criança

Coisas de criança
Paulo Mauá

Era uma vez a prefeitura, a praça da matriz com árvores copadas, o coreto, a escola com as crianças correndo no recreio, o pipoqueiro na esquina, a mercearia com as cores das frutas, o banco e o gerente de terno, as senhoras fofoqueiras nas janelas frente à calçada principal, o fazendeiro local e suas botas e todos os personagens de um conto da carochinha da singela vida naquela pequena cidade do interior.

O padre, de barriga avantajada e calvo, após a missa do final da tarde, começa a fechar lentamente as janelas da capela quando percebe que alguém está ajoelhado no confessionário. Parece uma criança. Pára o que está fazendo e desloca-se para o local onde o pecador mirim aguarda sua presença.

- Boa tarde, filho.
- Oi, padre Julião, é o Jorginho.
- Não precisa dizer o nome, tá bom ? Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Padre Julio estava acostumado com a informalidade na confissão inocente das crianças constantemente perseguidas pelo sentimento de culpa implantado pelas freiras do Instituto Liceu, o único colégio da cidade.

- Preciso confessar um pecado bem grande para o senhor, Pe. Julião. Um não, vários.
- Não consigo imaginar o seu coraçãozinho com tantos pecados, mas pode falar que estou aqui para ajudar você.
- Tenho mania de roubar coisas dos outros.
- Toda criança sempre pega alguma coisa aqui, ali. Isso é normal. Eu mesmo roubava galinhas do sítio vizinho para ter o que comer em casa. Mas me conta: o que você roubou ?
- Um monte de coisas: o canivete do seu Pacheco, o catavento do Paulinho, meu amigo da escola, a caixinha de cotonete do meu irmãozinho, o cachorro do guarda da estação, a coleira do cachorro dele, até a calcinha da tia Neca, calcinha não, calçona...
- Caramba... – exclamou o vigário tentando demonstrar surpresa e preocupação com os delitos do menino.
- Ah, tem a cesta de carambolas, caquis e cerejas da venda da dona Mirtes, a castanhola da Juanita, o cinzeiro da pensão Paiva, o cartucho da impressora da prefeitura, na verdade, os dois cartuchos, o colar da minha avó, o curió do seu...
- Tá bom, Jorginho. Já entendi.
- Entendeu nada, seu padre. Eu tenho essa vontade maluca que me queima o peito e eu vou pegando tudo. Tudo não: só pego coisas que começam com a letra C.
- Ahn... – exclamou o padre, agora realmente surpreso.
- Isso é normal ? Eu vou pro inferno ?
- Não sei se é normal, só sei que é pecado roubar coisas dos outros e você não vai pro inferno. Procure pensar em outras atividades que possam desviar a sua atenção dessa vontade incontrolável. Evite colocar as mãos nas coisas dos outros, qualquer coisa, começando com C, com B, não interessa a letra. O mais importante é você devolver tudo e se arrepender do que fez. Posso contar com você ?
- Pode sim. Quantas ave-marias tenho que rezar para ficar curado ?
- Reze 10 Ave-Marias, 5 Pai-Nossos e o ato de contrição ao final. Mas o mais importante é não fazer de novo e arrepender-se.
- Pode deixar. O senhor vai contar para alguém o que eu fiz ?
- De jeito nenhum, Jorginho. O que se comenta aqui, fica comigo e com Deus. Nem conte para os outros que eu roubava galinhas quando era criança, tá ?
- Puxa, estou muito contente. Estou aliviado. Deixa eu dar um abraço no senhor.

Antes que Padre Júlio pudesse responder, o menino levantou rapidamente do genuflexório e entrou no confessionário dando um abraço forte naquele senhor de batina. Ah, se todos os pecados do mundo se concentrassem nesses detalhes infantis.

Enquanto fechava o restante das janelas, o padre ainda ouviu os passos fortes e ligeiros do menino indo embora. Na penumbra foi deslocando-se até o pórtico da entrada da igreja e curiosamente não encontrou as chaves dos portões no bolso da batina. Onde foi parar o molho de chaves? Atônito, vasculhou o chão próximo, correu os olhos pelo corredor central, procurou, procurou e nada. De frente para o altar, reparou que mais alguma coisa iria fazer falta na celebração do dia seguinte.

Em casa, Jorginho abre seu baú de tesouros furtados, coloca as chaves do padre ao lado do coador de café da dona Rosinha do empório e contempla sua mais nova conquista como um troféu de ouro: o cálice da missa.

Um comentário: