quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Conversa de Bar Portenho

Paulo Mauá

- Uma cerveja estupidamente gelada!

Enquanto o garçom se afasta, olho ao redor do bar quase vazio àquela hora. Respiro os tons tênues da madrugada que confundem minha vista. Não distingo as formas fixas das flutuantes entre os copos vazios. Sinto os pés firmes sobre o chão vacilante e a madeira sob meu corpo não é forte suficiente para o peso que carrego. A melodia não é a mesma de outrora, fruto da escolha, da distância, da solidão da alma.

Viajo no tempo e em um bar parecido, ela sai da toalete sorrindo, mexe nos cabelos, passa pelo balcão de bebidas e vem em minha direção com a assídua taça de vinho.

- É malbec ou syrah ?

Ela me responde com displicente encanto natural:
- E eu que sei? Só sei que quero tomar um vinho ao seu lado sem pressa. Faz tempo que...
- Faz tempo que não tomamos vinho?
- Não, Carlos, faz tempo que a pressa... deixa prá lá.

A década de 60 foi o símbolo das revoltas, cassetetes, perseguições a sonhos e esperanças. O sucesso da ousadia de Che Guevara, filho da província de Rosário e da classe média alta argentina, impulsionou uma geração de universitários a enfrentar ideais. Eu fui um deles. Ela também.

Conheci Mercedes após uma manifestação frente à Casa Rosada. Fugindo da polícia, tropecei nos arbustos da Plaza de Mayo, driblei pessoas e carros na Rua Rivadavia e me abriguei atrás do altar da Catedral Metropolitana. Um ateu como eu pedia a Deus que os incontáveis minutos de tensão acabassem logo. Percebi na penumbra que outro coração disparava no mesmo ritmo e no mesmo espaço. Uma jovem morena. A mesma que agora eu despacharia do meu futuro. Com o passar das reuniões clandestinas, me envolvi com grupos radicais e a morte recente de Ernesto me mostrava claramente que não poderia arrastá-la, conscientemente, para esse tipo de vida.

- Canta alguma coisa só pra mim. Canta?

Ela olha para o palco, vê o violão disponível e volta o rosto para mim.
- Só se você atender aos meus desejos.
- Mercedes, desejo que cante para mim. Para que eu nunca mais me esqueça da sua voz, da sua boca deliciosa. Vem cá, me dá um beijo.

Ah, vou sentir falta da seda desses cabelos fartos, véus negros emoldurando os olhos oferecidos. Sofrimento é estar ciente que o meu destino não poderia ser o mesmo que o dela.

- Carlos, onde você vai é um lugar...quer dizer... será que...

Não respondo. Mantenho-me atento. É um jogo de paciência. Ela sabe disso e logo corta o silêncio com precisão:

- Por que não posso ir com você? Ajudo no que for preciso. Mudo de nome, saio de casa com a roupa do corpo. Fiz um pacto comigo mesma que você seria meu companheiro para o resto da minha vida desde aquele momento da catedral. Não precisa casar comigo na igreja. Só quero ser feliz ao seu lado. Não posso desaprender a amar de um dia para o outro. Será que você me entende?

Não tive alternativa e apelei de vez:
- Você pararia de cantar por minha causa, Mercedes ?

Ela precisava escutar isso e continuei implacavelmente:
- Eu não consigo imaginar você parando de cantar por um ideal político. A música é sua essência e você canta para viver. Respira notas musicais, entrega o seu corpo ao ritmo. Assim é você. Eu só sei reclamar e esbravejar. Cada um de nós nasceu com um talento. Não quero carregar comigo a sensação amarga de que a moça mais bonita que conheci parou de cantar, e encantar, só para sonhar minha paranóia particular. Não faça isso comigo. Não faça isso consigo.

Achei que ela ia chorar, mas lutava com todas as forças e tentava me encurralar:
- Carlos, você define o destino das nossas vidas a uma escolha minha única: você ou a música?
- Você não tem que escolher nada. Eu escolho no seu lugar. Eu. Não torne as coisas mais difíceis.

O silêncio imperou e se tivesse ficado daquele jeito, talvez nossos rumos seriam outros.
- Agora, vai cantar aquela música que eu adoro. Solte a voz e me embriague o resto da noite. Eu fico aqui, sentado, comportado, guardando esse momento para o resto da minha vida. Proponho um brinde: gracias a la vida.

Pensei até que ela não ia corresponder, mas com coragem e voz embargada, brindou comigo pela última vez:
- Gracias a la vida.

Tomou o resto do vinho, colocou a taça vazia ao meu lado, baixou a cabeça e enxugou a lágrima discreta que corria por sua face redonda, com os próprios cabelos. Caminhou em direção ao palco, colocou a bolsa de pano ao lado do banco, ajustou o microfone, 1-2-3 testando, afinou o violão, fechou os olhos e lançou ao ar acordes vibrantes. O ambiente ganhou força mas ficou triste. Antes de acabar a musica, levantei e fui embora.

A militância ficou para trás em cartazes rasgados e cicatrizes no embate da teoria filosófica e a prática social.
Por diversas vezes, o infame espelho da manhã acusou-me de covarde travestido de terno cinza escuro. A vida esmagou, sem piedade, minhas fantasias e ilusões. Nunca mais sonhei meus sonhos. Nossos sonhos. Nossas vidas nunca mais se cruzaram. Nunca mais fiz amor como nas longas madrugadas estudantis e frias de Buenos Aires.
Cheguei a ir a um show dela há uns vinte anos atrás. Músicos tarimbados e melodias de cunho político envolventes. Na pausa entre os compassos marcados, meu coração inquieto gritava, em vão: eu te amo, eu te amo. A declaração de amor perdia-se nas arquibancadas lotadas de olhos atentos extasiados com a sua presença fascinante no palco. No fim do espetáculo, cheguei a me encaminhar para o camarim, mas desisti. Havia desistido de nós há muito tempo.
Hoje, sinto falta das nossas conversas de bar, o displicente som das cordas daquele violão, as mãos dadas nas passeatas, a correria, os sustos, as gargalhadas, os nossos gritos de ordem, a boca carnuda me sorvendo. Tudo ficou grudado na minha alma. Como el musguito en la pietra.

Alivio a gravata e chega mais uma cerveja. A discreta música ambiente desperta a minha mente: é a voz de Mercedes. Enquanto enche meu copo, o garçom fala sem pressa e sem pedir licença:
- O senhor sabia que ela chegou a se apresentar uma vez aqui? Foi uma noite fantástica. Quem viu, viu. Silêncio.
- O senhor quer mais alguma coisa?

Respondo que não com a cabeça.
Pausa.
Ele torna a me questionar:
- Deixo essa taça de vinho vazia aí mesmo ?

Não respondo.
Ele entende e sai, deixando-me apenas com a perpétua solidão do meu palco.

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